PunkYoga #63: Miss Dior
“Sejam em verdade eternos, além dos opostos do mundo”, é o conselho de Krishna no Bhagavad Gita
Capítulo 1
Eu não sabia muito da história da Coco Chanel para além da moda. Já tinha ouvido falar que ela revolucionou o século 20 ao usar calças, também sei que tem o perfume lá. Mas nunca soube que ela teria sido uma agente nazista.
A série The New Look mostra isso. A história se passa durante a ocupação nazista em Paris (1940-1944), um período estranho e confuso da história, e que por ser estranho e confuso me chamou bastante atenção.
Desde que vi a série, fiquei fascinado em entender como artistas e pensadores franceses conseguiram conviver com as ruas do seu país sendo tomadas por alemães carrancudos e suásticas gigantes por quatro anos.
Descobri que para alguns, como a Chanel, não foi tão desconfortável assim. Mas não quer dizer que tenha sido fácil.
No livro Paris: A festa continuou, o jornalista Alan Riding escreveu:
Esses depoimentos [colhidos para compor este livro] foram decisivos para mostrar que a vida durante a ocupação não era uma fotografia estática, mas um drama em constante movimento, um cenário fervilhante em que lealdade e traição, comida e fome, amor e morte podiam coexistir, e onde mesmo as fronteiras que separavam bons e maus, resistentes e colaboracionista, pareciam mudar de lugar com o desenrolar dos acontecimentos.
A vida em Paris durante a ocupação nazista era tão complexa e contraditória quanto a própria vida.
Se você soubesse, por exemplo, que a Chanel se aliou aos alemães, e chegou até a receber a missão de entregar uma carta dos nazistas ao Winston Churchill, você, provavelmente, a acharia uma escrota…
Mas se eu te contasse que ela só fez isso para salvar a vida do sobrinho, que ela amava como um filho, você iria refletir melhor antes de tacar um frasco de Chanel nº 5 na cabeça dessa senhora.
A realidade quase nunca é o que parece. Desejos e motivações sempre estão escondidos por baixo de camadas que não conseguimos ver.
Às vezes, é como se a realidade fosse um móvel coberto por um lençol em uma casa de filme em dia de mudança. Tipo, você até tem uma ideia de que móvel é, mas ele só se revela mesmo quando você tira o pano.
O envolvimento da Chanel com os nazistas foi real, mas os biógrafos discordam do nível. Achei esperto da parte da série mostrar que mesmo a decisão de se envolver com o capeta pode ser relativizada. Eles oferecem um experimento mental filosófico radical ao espectador: se a pessoa que você mais ama no mundo estivesse prestes a morrer num campo de concentração, você toparia trabalhar para Hitler a fim de salvá-la? Não é uma decisão banal.
Mas acredito que muitas pessoas teriam a mesma reação do Albert Camus, que repudiava tanto a violência do nacionalismo francês quanto a violência dos ativistas pela libertação da Argélia — seu país de origem, que era colônia da França.
Neste momento, as pessoas [ativistas] estão jogando bombas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um desses bondes. Se isso é justiça, então eu prefiro minha mãe.
É claro que o Camus tava falando mais no sentido de seguir uma ideologia em vez de ser cooptado por uma causa por conveniência e sobrevivência, mas, a menos que sua mãe seja a Nazaré Tedesco, que tipo de pessoa acharia legal ver a mãe explodir por causas políticas?
Capítulo 2
Tem uma treta no campo dos psicodélicos, que é a seguinte…
O MDMA (ou ecstasy) deve se tornar o primeiro psicodélico a ser regulamentado nos Estados Unidos, ainda em 2024. Isso é uma coisa boa, é uma vitória para os ativistas, porque, depois de quase quarenta anos, o governo norte-americano finalmente pode reconhecer que uma substância que eles proibiram sem motivo algum — como a maconha e todos os outros psicodélicos — pode ser a sua salvação, trazendo alívio a pessoas traumatizadas, como os soldados que voltam das guerras que eles mesmos inventam.
Mas tem uma coisa estranha aí…
Várias pessoas já falaram que esses estudos feitos com MDMA têm falhas. Entre elas, dizem que os participantes que tiveram resultados negativos, foram desencorajados a continuar no estudo para não afetar o resultado final.
Veja bem, o MDMA, de fato, tem um potencial incomparável. Os estudos clínicos mostraram que, das cerca de 200 pessoas com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) que tomaram MDMA e fizeram terapia, 80% melhoraram de forma “significativa”, e essa melhora permaneceu entre 6 e 12 meses depois da experiência.
Além dos vetreanos, estamos falando de pessoas que foram vítimas de estupro, ou que sobreviveram a grandes tragédias, e que podem recuperar suas vidas. Não é um resultado desprezível. Os psicodélicos são realmente promissores.
Mas eles também não podem ser liberados de qualquer jeito.
Quando a indústria farmacêutica, o governo dos Estados Unidos e o Elon Musk estão interessados em uma coisa, nós precisamos desconfiar. Além disso, quando falamos dos psicodelicos naturais, como a ayahuasca e os cogumelos, por exemplo, estamos falando de tecnologias aprimoradas por povos indígenas há milhares de anos. Não parece justo que empresários comecem a vender isso e a ganhar rios de dinheiro, enquanto as mesmas comunidades indígenas permaneçam sendo massacradas como são há 500 anos.
Esses questionamentos fazem com que, mesmo as pessoas mais simpáticas aos psicodélicos, como eu!, passem a questionar se os benefícios que eles trazem são maiores do que os prejuízos que podem gerar.
Não acho que proibir é o caminho de nada, mas se quisermos que essas substâncias nos preencham com sua magnificência em vez de encher o cu dos bilhionários com mais dinheiro, despedaçando os mais pobres, é melhor definirmos certinho como isso vai acontecer. Porque nada é tão simples.
Como durante a ocupação nazista em Paris, o bom e o mau coexistem em um cenário fervilhante.
Capítulo 3
A vida é complexa, um emaranhado de nós que não se desatam, e qualquer tentativa de simplificar é uma ficção.
Eu saí com essa ideia da última conversa que tive com o meu amigo Ale. Tendo na mente a história da Chanel e a treta dos psicodélicos, eu não poderia concordar mais — e poderia citar outros incontáveis exemplos.
Mas assistindo a The New Look entendi que, às vezes, a simplificação não só é precisa como necessária.
Em uma cena da série, que também conta a história de ascensão do Christian Dior, seu irmão fala:
Tenho lido sobre a vida e a natureza. Nós todos somos feitos de duas partes. A superior e a inferior. A luz e a escuridão. Em cada um de nós, elas flutuam como camadas, separadas por uma barra. Nossa metade escura, nossa parte inferior, precisa ficar lá, fincada na terra. Só então, a outra parte, a luz, pode aparecer. É o que você precisa mostrar ao mundo.
A cena tem um efeito dramático, porque é depois dessa conversa que Dior, confuso em relação sobre o que desenhar na sua primiera coleção, decide criar a Bar Jacket, a peça mais icônica da coleção New Look, que “marcou uma virada na história da moda, e definiu o rumo da moda do pós-guerra”, segundo a Vogue.
A moda não é só roupa, (quando não é feita por gente esnobe) ela conta a história do nosso tempo.
Olhando assim o figurino, tão preto no branco, supostamente inspirado num discurso tão binário, eu não consigo parar de pensar que o que o Dior tentou fazer foi, talvez, organizar o caos do mundo através da beleza e da simplicidade. (Não tô falando que o look é simples, mas o que ele evoca é.)
Pode ser que, através de um conceito tão fácil de ser compreendido pelo ocidentais, como a ideia de opostos, Dior tenha tentado criar um ponto único para onde todos pudessem olhar, num momento caótico em que cada um contemplava o abismo.
Mas a realidade não é simples. Ela é complexa.
Ao mostrar isso, o Dior emula um místico que transcende os reino dos conceitos. No livro O Tao da Física, o Fritjof Capra escreve que o místico:
(…) se apercebe de que bem e mal, prazer e dor, vida e morte não constituem experiências absolutas que pertencem a categorias diferentes mas, em vez disso, são simplesmente dois lados de uma mesma realidade, partes extremas de um único todo. A consciência de que todos os opostos são polares e, dessa forma, uma unidade é vista como um dos alvos mais elevados do homem [e da mulher] nas tradições espirituais do Oriente.
O que me leva a crer que o mundo é simples. Mas, ao mesmo tempo, ele também é complexo. Essa visão aparentemente paradoxal pode ser devastadora para o pensamento ocidental.
Mas, de forma nenhuma, o mundo é binário.
O fim.
Você é muito mestre em relacionar assuntos aparentemente aleatórios! Quero mais edições, cara, escreve aí
"A vida é complexa, um emaranhado de nós que não se desatam, e qualquer tentativa de simplificar é uma ficção."
Nathan, fico impressionada com como suas edições conversam com os pensamentos que ocupam a minha cabeça.