PunkYoga #65: Doktor Mrok (Parte 1/2)
Mais uma ficção científica de horror; desta vez, com ultraviolência, hipocrisia religiosa, manipulação genética & mini-cérebros
Escrevi este conto para a oficina de literatura de horror do Oscar Nestarez, um escritor que admiro e cuja elegância literária é uma referência pra mim. Como jornalista, acho muito sofrido escrever ficção, porque tenho dificuldade de me convencer de que o mundo precisa de mais uma história sem cabimento. Mas me forço a fazer isso, porque, apesar do processo ser intenso e cansativo, ele também é divertido.
Eu gosto de costurar a história como se fosse um suéter de lã, remendando e ajustando cada parte, durante semanas. E o resultado é a sensação de que o mundo não conseguiu me triturar. Acho que tem um pouco de resistência anticapitalista nisso.
Quando entreguei a primeira versão do conto ao Oscar, ainda tinham várias partes soltas. Não estava satisfeito. Mas agora, depois de dias mexendo e atrasando a publicação desta aloprada newsletter, ele finalmente está aí…
Essa história tem ultraviolência, hipocrisia religiosa, manipulação genética e mini-cérebros. É a história de um homem que descobre ter alguém morando dentro da sua cabeça, e como isso pode ser torturante. Depois comento mais.
Glauber estava tentando arrancar os próprios olhos com uma colher. Porque, segundo ele, tinha alguém dentro da sua cabeça. Tira de mim! Tira de mim!, ele gritava, enquanto eu tirava a colher das suas mãos e tacava longe. Seu grito partia meus tímpanos. Quando soltei os seus braços para tapar os meus ouvidos, ele correu para longe e bateu a cabeça na parede com a maior força que tinha. Qualquer cabeça normal se espatifaria. Pelo menos um pouco. Mas a cabeça do Glauber era diferente.
Nos conhecemos uns meses antes. A nossa primeira sessão de terapia foi um desastre, ele me desafiava o tempo todo, dizia que terapia era pseudociência.
Você não precisa acreditar, vamos só conversar e você vê como se sente, eu dizia, sem entender bem o porquê ele estava ali.
Em uma sessão, quis saber sobre o que ele sonhava. Ele disse que os sonhos não queriam dizer nada. O que poderia significar alguém escalpelado correndo em uma praia de areia preta? Ele me perguntava, porque era só com isso que ele sonhava.
Interessante. Anotei.
Foi nessa mesma sessão, já depois de ganhar um pouco a sua confiança, que ele contou sobre o homem que morava dentro da sua cabeça. Começou há alguns meses, e foi ficando mais forte. Não é que ele ouvisse uma voz. Ele diz que sentia uma presença. E começa a agir como se fosse outra pessoa, mas sem deixar de ser ele mesmo, como se, desrespeitando todas as leis da física, dois corpos ocupassem e disputassem o mesmo lugar no espaço.
O Glauber percebeu que isso estava acontecendo pela primeira vez quando sentiu um desejo sem fim de fumar um cigarro, sem nunca ter fumado antes. Ao tragá-lo inteiro de uma vez, como se quisesse aspirar todo o ar do universo, sentiu o gosto ardido de cinzas misturado com ansiedade, e teve vontade de vomitar. Quis beber uma garrafa inteira de antisséptico bucal. Desde então, tem andado com um maço de Vila Rica amassado no bolso da camisa, e uma amostra de Listerine no bolso da calça.
Não sou eu, ele dizia, é o outro.
Uma vez, ele estava dormindo na cama com seu Marido, e sentiu vontade de ir ao banheiro no meio da noite. Quando se levantou, suas vistas escureceram, seu corpo petrificou. Ele ficou parado na beira da cama, olhando para o nada. Não sabe ao certo por quanto tempo ficou naquela posição. Mas permaneceu tempo suficiente para o céu começar a trocar o azul escuro profundo pelo rosa. O Marido acordou, chamou ele várias vezes, mas ele não respondia. Até que se virou de frente e, com um grunhido que parecia o esforço desesperado de um afogado tentando respirar, disse: MROOOK.
E desabou na cama.
Naquela noite, sonhou pela primeira vez com o escalpelamento na praia de areia preta.
Depois desse episódio, o Marido o intimou a buscar algum tipo de ajuda. Ele disse que não iriam voltar a dormir juntos se o Glauber não investigasse a situação. O Marido sugeriu que visitassem sua mãe, que era sensitiva. O Glauber amava a sogra. Ela era como uma mãe para ele. Principalmente, porque ele não tinha uma relação muito boa com a dele, desde a adolescência, quando descobriu que ela se prostituía, e que ele era filho de um cliente que ela nunca mais viu na vida.
Mas, apesar do amor que sentia pela sogra, Glauber achava ridículo fazer uma consulta espiritual com ela. Apesar de terem se aproximado justamente por causa disso, o Marido odiava esse ceticismo do Glauber.
Eles haviam se conhecido em uma festa. Durante uma conversa com amigos, o futuro Marido perguntou o signo de Glauber. Ele revirou os olhos até o fundo do cérebro. Sério?, retrucou, com um tom entre arrogante e sarcástico. No que você acredita?, questionou o Marido. Em nada, respondeu Glauber. No fundo, eles se completavam. A provocação inicial não demorou para se transformar em paixão. O Marido conseguia ver a parte macia do Glauber.
Então, depois de uns dias, o Marido levou sua mãe sensitiva para casa. E o Glauber não teve outra opção, senão relatar o episódio daquela madrugada estranha.
Posso tocar a sua cabeça? Perguntou a sogra, depois de ouvir tudo com atenção. Sem graça, ele assentiu. Quando ela se aproximou, o corpo de Glauber começou a tremer. A mulher não conseguiu manter a mão fixa. Era como se Glauber tivesse recebido a descarga de um fio desencapado.
Aos poucos, ele foi parando.
Ainda de pé, com o peito aberto, o queixo apontando o teto e os olhos brancos, repetiu o som gutural e abafado: MROOOK.
Olhando estarrecida para a cena, a sogra se afastou, com a boca aberta e os olhos de laranja mecânica. Eu não tenho permissão para mexer com isso, ela disse.
A terapia foi o que restou.
***
O Glauber nunca teve um ataque desse tipo durante as sessões. Mas essa palavra, “Mrok”, não saiu da minha cabeça desde a primeira vez em que a ouvi. Pensei que se eu soubesse o que ela significava, poderia ajudar. As palavras que as pessoas usam podem ser chaves importantes no processo de análise. O que isso queria dizer?
Resolvi pesquisar. Mas a internet só trazia imagens escuras de pessoas rastejando.
Sei lá, pela sonoridade, parecia russo. Resolvi então ligar para um amigo que tinha estudado o idioma na faculdade de Letras. Expliquei o dilema e ele disse que não tinha a mínima ideia do que aquilo poderia significar. Mas ele poderia ver com os colegas. Com certeza, algum deles saberia.
A promessa foi em vão, os amigos de Letras também não sabiam o significado. Para um deles, no entanto, a palavra não era estranha, ele já tinha visto um livro com esse título em um sebo do centro de Ubatuba.
Às vezes, eu me pergunto que sentimento foi esse que me instigou a me envolver tanto nessa história. Não pensei duas vezes antes de descer a serra. Eram três horas de viagem, dava para ir e voltar em um dia.
A minha expectativa era encontrar um sebo limpo, com os títulos organizados por ordem alfabética, assim não teria erro. Iria para a próxima sessão com o Glauber, no dia seguinte, com uma informação mais palpável. Mas não foi assim que aconteceu.
O endereço que me indicaram era a garagem de uma casa muito velha, parecia um mercado de pulgas confinado entre paredes mofadas. Os livros disputavam espaço com camisetas puídas do Silverchair, bonecas sem cabeça e panelas com crostas tão espessas de sujeira que pareciam pequenos morros de doenças. Fiquei pensando por que qualquer pessoa entraria ali.
Perguntei à Vendedora com Tapa-Olho se ela tinha algum livro com o título “Mrok”. Mas sua cara me fez ter vontade de pedir desculpa pela minha existência. Ela deu uma última tragada no cigarro, e apontou a pilha de livros no canto mais escuro da garagem. Pode procurar ali, disse.
Descobri que aquele lugar guardava muito mais livros do que parecia à primeira vista. E muitos dos livros sequer tinham capa. Passei horas mergulhado em páginas que pareciam não encostar em dedos humanos há décadas.
Não acreditei quando anoiteceu e eu continuava ali… Por que, afinal, eu estava procurando um livro que eu nem sabia se existia? O que eu iria descobrir com isso? E se não valesse de nada? Será que isso era eticamente profissional?
Você tem livros em outro lugar além desse?, perguntei, depois de finalizar mais uma pilha. A Vendedora com Tapa-Olho me apontou um armário de madeira. E eu rezei para que os livros guardados ali não tivessem sido comidos por cupins pré-históricos. Quando abri a porta, que rangia sob o peso dos anos, dentro do móvel sem prateleiras, tinha um único volume. Entre o pó do armário e a minha ansiedade, dava para ver um livro com capa de tecido comido por traças. A costura da lombada era aparente, e segurava páginas que pareciam ter sido embebidas em café. Na capa, com um brilho apagado, em letras ornamentais escritas à mão, dava para ler: “Mrok”.
Era ele.
Quando abri as páginas, fiquei com medo que elas se desfizessem. Alcancei uma colher de prata grande com um monograma ilegível e comecei a virar as folhas com o cabo, evitando o máximo de contato. Fiquei confuso. Folheava lauda por lauda e não conseguia entender o que estava escrito. A tinta das palavras parecia borrada.
Fui até a Vendedora com Tapa-Olho. Perguntei se ela sabia sobre o que era o livro. Segurando o cigarro no canto da boca, e pegando o objeto com as duas mãos, ela analisou bem o material e disse: Nunca li. Estava largado lá há anos, mas todo mundo na cidade conhecia a história. Tinha acontecido lá mesmo, uns anos atrás.
Era a história do cientista Jakub Nowak. Jakub é tipo Tiago em polonês, ela lembrou. Ele era conhecido na Polônia na década de 1980, porque dizia que queria enganar a morte. Naquela época, ele fez um avanço revolucionário: conseguiu criar mini-cérebros em seu laboratório, utilizando tecidos cerebrais reais para formar versões menores do cérebro humano. Assim, ele conseguia estudar o funcionamento cerebral em um nível que ninguém nunca conseguiu. Em um experimento bizarro, um desses mini-cérebros gerou uma consciência de forma completamente espontânea. De algum jeito, esses pequenos aglomerados de células haviam desenvolvido um sentido próprio de ser. O Jakub ficou obcecado. Ele acreditou que tinha descoberto a chave para a imortalidade. Ele replicou o seu próprio código genético dentro desses organoides. A ideia era simples, mas aterrorizante: se a sua própria consciência brotasse em um desses mini-cérebros, talvez ele pudesse transferir essa consciência para um ser humano de verdade. Mas tinha um problema: como transformar um mini-cérebro em um ser humano completo? Foi aí que ele levou sua pesquisa para um novo patamar. Jakub decidiu implantar um mini-cérebro consciente em um embrião humano, criado através de inseminação artificial. O embrião seria gestado e, eventualmente, daria à luz um bebê que não apenas teria seu código genético, mas, possivelmente, carregaria uma consciência derivada diretamente da sua. Esse seria um passo para conseguir viver para sempre. A perspectiva era assustadora, mas Jakub estava disposto a enganar a morte. Ele passou a ser chamado de louco e foi perseguido na Polônia. Então, fugiu para o Brasil, onde continuou seus experimentos em Ubatuba. Lá, ele resolveu dopar mulheres do único bordel da cidade para realizar inseminações artificiais sem que elas soubessem. Duas mulheres foram vítimas desses experimentos doentios. E todo mundo sabia quem eram elas. As mulheres falaram do abuso que haviam sofrido nas missas, nas feiras de quarta-feira e no mercado de peixe. Ninguém ouviu. Mas pode ser também que ninguém quisesse se indispor com um gringo vindo da Europa que gastava em dólar na cidade. Mesmo assim, o Jakub foi perseguido, mas por outro motivo. Foram atrás dele porque, uma noite, voltando bêbado de mais um bar triste, fumando seu cigarro paraguaio, sem ter certeza sobre o futuro das suas pesquisas, ele mijou na porta da igreja da cidade. Alguns moradores viram, e tentaram fazer ele parar. Nervoso e se sentindo corajoso, ele quebrou a porta de madeira com um chute, e, entrando no salão principal da igreja, acabou quebrando todas as imagens que já descansavam no escuro da madrugada. Entre elas, estava a imagem de São Pedro Pescador. Era um dia antes da procissão marítima que comemorava o dia do santo. Alguns moradores ficaram indignados. Colocaram ele na caçamba de uma caminhonete e deram muitos socos nele. Jakub já estava quase inconsciente quando chegaram na Praia do Engenho. Com um facão, alguns moradores arrancaram todo o seu coro. E, como se fossem peças de roupa, penduraram a pele do Jakub pingando sangue no varal. Eles o deixaram lá para morrer, enquanto a maresia ardia o que havia sobrado do seu corpo. Mas, mesmo em carne viva, Jakub manteve a consciência. E juntando toda a força que tinha, ele escapou, correndo escalpelado pelas areias pretas da praia escura. Nunca mais foi visto. Jakub se tornou uma lenda local, conhecido como Doktor Mrok, Doutor das Trevas em polonês. A Vendedora com Tapa-Olho contou que até hoje alguns moradores são assombrados com essa história. Dizem que, em certas noites, na praia, dá pra ouvir alguém gritando: MROOOK!
Ela contou ainda que as duas mulheres atacadas por ele chegaram a engravidar. Uma delas morreu no parto. Que Deus a tenha, coitada. O filho sobreviveu. Quer dizer, sobreviveu até uns anos atrás. Era Peterson o nome dele, ele trabalhava como guia turístico no Pico do Corcovado, um dos pontos mais altos da Serra do Mar. Um dia, ele começou com uns papos de maluco, segundo ela, dizendo que ouvia umas coisas dentro da cabeça. Começou a agir estranho. Ele era evangélico, mas parou de frequentar os cultos e começou a beber muito. Ao mesmo tempo que fazia essas loucuras, dizia que não era ele.
Até que, um dia, subiu com um grupo no Pico. Quem estava lá conta que, quando já estavam no topo, o rapaz começou a tremer muito, a falar coisas estranhas. E se lançou para o mar de morros à sua frente. Todos ficaram em choque quando viram o Peterson caindo na mata. Tiveram que pedir ajuda para o pessoal da aldeia para trazer o corpo, que levou dias para ser encontrado. Que fim trágico essa família teve, lamentou a Vendedora com Tapa-Olho.
Mas outra mulher do bordel também havia sido atacada pelo Doktor Mrok. Ela se mudou da cidade, foi refazer a vida em outro lugar que ninguém soube onde. Dizem que ela teve o filho, mas ninguém tem certeza.
Continua com a última parte na semana que vem…
Muito bom!! Ansiosa para parte 2!! <3 <3
Amei o revirar os olhos até o fundo do cérebro e as referências ao Silverchair, Laranja mecânica e Stevens Rehen. Não consegui parar de ler, prendeu muito minha atenção e quero logo a parte 2.