PunkYoga #53: Feito poça de gente
Esses dias resolvi tomar 01 grama de cogumelo na praia. Não é uma microdose, mas também não é uma dose macro. É uma dose ok, que não me deixa desnorteado. Só por isso me senti seguro pra tomar sozinho fora de casa.
Fui de bicicleta pra encosta do Caisão, aqui em Ubatuba, onde tem uma entrada no meio do mato que é quase imperceptível pra quem passa avoado. Essa entrada dá pra umas pedras bem na beirada do mar. Nunca tem ninguém lá. É meio desconfortável, porque, afinal, são pedras, o que talvez explique porque nunca tem ninguém lá. Mas as pedras são meio grandes, o acesso é fácil, não oferecem risco e elas formam superfícies planas boas pra esticar a canga e deitar largado. Também é muito perto de onde eu moro, então é um lugar perfeito pra ter uma experiência dessas.
Além disso, como podem ver, é um ótimo lugar pra biscoitar...
Pra mim (e acho que pra grande maioria das pessoas), a sensação inicial do cogumelo costuma ser de derretimento do cérebro. Sempre depois de uma meia hora depois de comer, parece que dá vontade de se fundir com o chão, formando uma grande poça de gente. Mas essa sensação é completamente mental, eu sei. Percebi que se eu me agito, mexo os braços, pulo, essa sensação de derretimento não me pega.
É quase como se eu tivesse sendo arrastado por uma correnteza leve em um rio que bate na cintura, e, em vez de boiar e me deixar levar, eu ficasse de pé e andasse no contrafluxo. Seria mais fácil me entregar. Mas passam barcos por ali e eu não queria que ninguém passasse e me visse lambendo uma pedra.
Foi por isso que pensei que seria uma boa ideia começar essa experiência — em um dia de sol, na beira de um mar verde esmeralda, com tartarugas passando ao meu lado — ouvindo o disco novo da Pabllo Vittar. Eu sabia que ele poderia me manter agitado, sem derreter, assim nenhum marinheiro me veria dando vexame, e eu manteria o mínimo de compostura.
E foi uma ótima ideia!
Confesso que tive leves palpitações com a MC Carol cantando “TÁ DESCONTROLADA! TÁ DESCONTROLADA! SE ACABOU A PILHA VAMO BOTAR NA TOMADA”, mas também dei gostosas gargalhadas com o hit ‘Penetra’, em que a Pabllo canta: “Quando tudo é terminado, não há nada que me impeça/ Não preciso de convite porque eu entro de penetra/ Penetra, penetra, penetra, nóis entra de penetra/ penetra, penetra”.
O álbum tem apenas vinte minutos, então eu só comecei a sentir os efeitos mais intensos do cogumelo depois que ele acabou. A essa altura, já tava ouvindo uma mixtape de músicas orientais do Daniel Valeriano, um produtor musical que sempre salva meus ouvidos.
Olhei pro céu. Bem ao longe, percebi que algumas das montanhas que geralmente são visíveis daquele ponto estavam escondidas por uma névoa branca. Como se São Pedro tivesse ligado uma máquina de gelo seco.
Era chuva.
E eu já tava ciente de que isso podia acontecer, até por isso não quis me afastar muito de casa. Mas a chuva ainda tava distante, não era uma coisa a se preocupar naquele momento.
Naquela hora, ainda consegui ter uma visão da costeira que nunca tive. As pedras naquele ponto têm muitas conchas brancas incrustadas. Elas não cobrem as pedras por inteiro, só a parte que a água do mar bate, indicando até onde sobe a maré. Quando a maré tá baixa — como tava naquela hora — dá pra ver certinho a linha de conchas nas pedras.
E como a luz do sol tava refletindo bem ali, a cor branca das conchas tava praticamente fluorescente. Tudo brilhava de forma muito intensa. Ou pode ser que minhas pupilas tivessem do tamanho de um alfajor. Ok, mas não deixa de ser uma beleza que eu não tô acostumado a ver todo dia.
Depois de ser abduzido por essa cena, comecei a ficar preocupado em aparecer alguém ali. Ou de vir um tsunami. Ou de cair uma árvore. Ou de parar uma escuna lotada de turista e me obrigar a dançar a música do Léo Santana. Eu tava ficando claramente ansioso. E isso é péssimo. Obviamente, eu tava indo por um caminho de pensamentos que ia me levar a ao desespero se eu continuasse seguindo.
Então ajeitei a postura e fiz o que sempre faço quando identifico essa sensação de peito emaranhado (seja numa situação com psicodélicos ou no dia a dia): sentei e chorei.
Tô zuando… Eu respirei profundamente três vezes.
Na primeira puxada de ar, o pensamento intruso continua lá, mas ele se desconfigura como alguém que pisa num quebra-cabeças montado. Na segunda puxada de ar, o pensamento já vai escoando pelo ralo. Na terceira puxada de ar, você já nem lembra no que tava pensando. A mente vai virando um lago espelhado.
Depois de alguns minutos de respiradas, a ansiedade passou. Nessa hora, olhei pra frente e percebi que a névoa branca das montanhas tava se aproximando. Mais rápido do que eu tinha pensado. Ela já tinha coberto não só as montanhas mas toda a orla do Perequê, que é a praia que fica bem de frente pro lugar onde eu tava.
Percebi que era chegado o momento de fazer uma decisão importante. Ou eu pegava minhas coisas, subia na bike e ia pra casa; ou organizava minhas coisas de uma forma que elas não molhassem e ficava lá pra fazer a Vanessa da Matta e tomar um bom banho de chuva, enquanto girava os braços, olhando para o céu.
Eu escolhi a Vanessa da Matta.
Cuidadosamente, encapei meu celular e meu fone de ouvido (as únicas coisas que não podiam molhar), enrolei tudo na canga e coloquei dentro da mochila. Ainda busquei na costeira algum lugar mais coberto onde eu pudesse enfiar a mala, e me preparei pra chegada da chuva.
Ainda deu tempo de soprar um rapé, e, com a proximidade da tempestade, achei apropriado ouvir o kirtan de Shiva, cantado pelo Krishna Das, que é uma das coisas mais bonitas do universo observável.
Quando senti que já tinha organizado tudo, que tava totalmente alinhado comigo e com as minhas coisas, levantei, olhei pro céu e pensei PODE VIR CHUVA…
É claro que a chuva não caiu nessa hora, porque a natureza não está ali pra me satisfazer e isso não é um filme. Ainda esperei uns 20 minutos pra começar a pingar e só então caiu um toró que nem era tão forte que me ensopasse e nem tão fraco que me deixasse seco. Era ok, o que me deixou um pouco decepcionado, porque já que eu tava lá eu queria uma coisa mais cinematográfica.
Enquanto tava lá recebendo água do céu, também pensei que a natureza não faz nada sem mandar avisos. Até um tsunami quando acontece faz recuar toda a água do mar antes de surgir como uma onda monstruosa. Fiquei pensando que, na verdade, são poucas as coisas na vida que acontecem sem aviso. Tem sempre um sinal antes da tempestade.
Escrevendo esse texto, por exemplo, eu me dou conta de que já tem um tempo que meu corpo tá dizendo que tem alguma coisa estranha com ele, uma dor na lombar que eu ando negligenciando. Mas segunda eu vou no médico, prometo.
Esse pensamento se conectou com uma outra situação que eu vivo. No começo do ano, fui informado de que iria perder um dos meus trabalhos, o que, pra um jornalista freelancer, é o mesmo que insônia. Eu já sentia que essa dispensa poderia acontecer a qualquer momento, mas não fiz nada a respeito. Não me organizei, não fiz reserva, porque a vida de um jornalista freelancer é muito radical… Por isso que quando o editor gentilmente disse que não continuaria com os meus serviços eu nem me senti tão surpreso.
Pensei “putz, eu poderia ter economizado uma grana já que eu tava sentindo um negócio estranho”? Sim, pensei. Mas não fiz. Então é aquele famoso aforismo da Vanessa da Matta: “É só isso! Não tem mais jeito! Acabou! Boa sorte”. Em vez de ficar remoendo o que deveria ter feito, pensei no que faria dali pra frente, e constatei que obviamente teria que fazer uma realocação de recursos.
Basicamente, teria que cortar as despesas pela metade. Acabou que, no fim, o editor avisou que tinha conseguido prolongar o contrato por mais seis meses, assim eu poderia me organizar melhor. E eu fiquei muitíssimo mais aliviado.
Me ocorreu que eu deveria aproveitar essa chance e me organizar melhor financeiramente. Deveria fazer exatamente a mesma coisa que eu fiz com a mochila na encosta do Caisão. Eu deveria proteger o que precisava ser protegido e deixar tudo em segurança pra chegada da tempestade que já se anunciava.
Mas e se, como a chuva do Caisão, a tempestade não fosse tão tempestade assim? E se fosse só uma chuvinha de verão? Sempre tem essa possibilidade. Não tem como saber. Mas, se acontecesse, pelo menos, eu estaria preparado.
É claro que nem sempre seu chefe te liga dizendo que você vai ter seis meses pra resolver sua vida. Mas o que eu quero dizer é que, muitas vezes, os sinais tão aí. A gente que não ouve. Ou não quer ouvir. Porque o barulho, às vezes, é mais conveniente do que o silêncio.
Estar atento ao nosso redor e saber antecipar possíveis percalços não tem nada a ver com aquele desespero que nos faz estocar comida esperando o fim do mundo. É uma coisa mais sutil. Não é paranoia, é intuição. E a gente só consegue perceber a intuição quando observa algo diferente no padrão das coisas.
Quando eu decidi ir embora das pedras, já tava me sentindo plenamente capacitado para manobrar uma bicicleta. O efeito do cogumelo já tava se esvaindo. Eu devo ter ficado ali umas três horas pensando nessas coisas. Àquela altura, as conchas incrustadas nas pedras já não brilhavam mais. Na verdade, com o céu nublado, elas estavam completamente apagadas, fechadas pra qualquer um que não as conhecesse.
Passou umas duas semanas dessa experiência. Era o dia em que a mídia anunciava o aniversário de um ano da guerra da Rússica contra a Ucrânia. O dia em que eu termino de escrever essa carta.
Eu tava ouvindo o Café da Manhã, da Folha, quando o depoimento de uma das vítimas do conflito me chamou atenção. Ela dizia exatamento o contrário do que eu fiquei enrolando pra dizer nesse texto.
Ela dizia que, por mais que eles soubessem que poderia rolar uma guerra, eles não tinham se preparado. Porque pra uma guerra ninguém nunca tá preparado o suficiente.
Era a realidade estapeando a minha viagem de cogumelo.
E, depois de muito tempo pensando se ainda fazia sentido publicar uma coisa dessas, pensei que, talvez, uma coisa não elimine a outra.
Fim.
Dá pra creditar que a gente já tá quase em março, menina? O tempo voa...
Enrolei pra publicar essa edição, porque, na verdade, eu prometi escrever sobre outro assunto. Até escrevi, mas não consegui desenvolver do jeito que queria, e se tivesse usando uma máquina de escrever, com certeza, eu pegaria o papel com raiva, amassaria e jogaria no lixinho ao lado da mesa... Como eu não uso máquina de escrever, eu só seleciono tudo e deleto com um botão. Bem menos glamuroso.
Acho que cheguei em um daqueles famosos "bloqueios criativos". Mas a experiência com o cogu me levou a fazer conexões diferentes no meu cérebro, e eu achei que seria legal escrever sobre isso. E me senti tão confiante que ainda botei uma foto minha de cueca, pra você ver...
Como eu disse, nós, jornalistas freelancers, temos uma vida radical.
Se você gostou (do texto, não da foto de cueca), manda pra alguém que você acha que vai curtir, porque nós, jornalistas freelancers, também não temos salário fixo, então que, pelo menos, tenhamos leitores.
É um prazer ter você lendo essa última linha...
Se quiser trocar uma ideia, me responde esse e-mail, ou me encontra lá no instagram pessoal ou no @punkyoga_ mesmo.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan