PunkYoga #54: Bazuca de sonho
Tem uma cena muito boa no filme Triângulo da Tristeza, na qual um casal hétero de velhinhos explica pra um casal hétero jovem como eles ficaram ricos. Eles estão jantando em um cruzeiro, quando, tomando um bom vinho, o mais velho diz que sua fortuna vem da venda de granadas. Depois, cortando um bife calmamente, a esposa lembra que também faturaram muito com minas terrestres e armas de guerra.
Enquanto os mais jovens se entreolham com um sorriso constrangido, os mais velhos sugerem um brinde... Ao amor!
Essa é só uma das ironiais do filme que é praticamente um arquipélago de ironias cercado por crítica social e desconforto branco. Em outra cena, em uma operação militar ultracomplexa, um helicóptero sobrevoa o navio de luxo no meio do oceano e joga uma maleta próximo da embarcação, um bote se aproxima e traz a maleta ao convés, uma comissária a recolhe e a leva até a cozinha, lá um chef abre o pacote e retira... Três potes de Nutella pra preparar a sobremesa dos hóspedes ricos.
Pinguins do deserto
Me lembrei bastante dessa cena quando ouvi o episódio "O limite de cada um" do podcast Rádio Novelo Apresenta. O João Batista Jr. contou a história de um mordomo de gente podre de rica, que trabalha no hotel mais luxuoso do mundo, o Burj Al Arab — aquele prédio que parece um vela de barco, em uma ilha artificial de Dubai.
Basicamente, o cara precisa realizar todas as vontades de gente que nunca precisou se humilhar pra correr atrás de ônibus.
Antes disso, ele trabalhou pra família real saudita. Uma vez, ele teve que levar pinguins do zoológico da Alemanha pra um deserto na Arábia Saudita, porque uma das crianças da família tava fazendo aniversário, e o tema da festa era o filme Madagascar.
Ele diz que só falhou uma vez. Foi quando não conseguiu levar a família pra mergulhar com o Titanic, porque, de acordo com as leis da física, o cérebro humano explode sob pressão.
O mordomo diz que o prazer dele é servir. Tudo bem, tem gente que gosta de desafios, mas eu fiquei pensando que ele também deve ganhar muito bem pra fazer isso, porque não é POCIVEU...
Topa tudo por dinheiro
Nesse sentido, achei os funcionários do reality show Below Deck, na Netflix, muito mais honestos, porque eles não escondem que tão servindo hóspedes com cara de cu só pra ganhar uma boa gorjeta. E por "boa gorjeta" eu quero dizer tipo 20 mil dólares (que eles dividem entre a equipe).
Adoro acompanhar as tretas da tripulação, como quando um grupo de mulheres ricas e veganas encomendou só pratos saudáveis pro chef, mas, no meio da madrugada, fizeram ele levantar da cama pra preparar burritos monstruosos de chilli com carne.
Também teve outra vez que uma das hóspedes reclamou que os pratos de café da manhã não vinham feitos, e a mulher achava um absurdo ela mesma pegar um pão no cesto e enfiar no prato, então uma das funcionárias teve que preparar o prato pra ela.
As Patricinhas de Playboy
O que o filme, o podcast e o reality revelam é que existe uma realidade paralela na cabeça de pessoas ultrarricas que as faz pensar que o mundo tá ali pra serví-las.
Lembro da vez, na época em que trabalhava na Playboy, que fui entrevistar uma estrela de capa, e a abençoada me fez ficar esperando quatro horas pra poder falar com ela, e, quando finalmente quis me atender, ela lembrou que era hora do almoço, então, pra não atrasar mais, a assessora se ofereceu pra cortar o bife e dar na boca dela (sim, ela tava literalmente cortando o bife e dando na boca dela), enquanto a bonita ficava mexendo no celular e respondendo às minhas perguntas sem nem fingir interesse. (Quem quiser saber a identidade dessa querida me escreve.)
A nossa realidade molda a nossa percepção de mundo, e esses casos são exemplos perfeitos disso. De um lado, aquele que serve, do outro aquele que é servido. Com certeza esses dois tipos de pessoas percebem o seu entorno de formas muito distintas. E ainda dá pra adicionar a questão racial e de gênero nessa esquação. Quando junta tudo isso, você cria realidades que podem interagir entre si, que podem se tocar, coexistir, mas que habitam dimensões completamente diferentes.
Em algumas dessas dimensões é dado o direito de sonhar. Em outras não.
Sonhos de ketshup
Esses dias participei de um exercício interessante de um amigo sociólogo em parceria com amigas antropólogas. A questão é que, com o crescimento das terapias psicodélicas, vai ser preciso pensar em como serão os espaços que vão oferecer esses cuidados. Você não pode tomar em qualquer lugar uma substância que abre a tampa do seu cérebro e te teletransporta pra Nárnia. Então o exercício consistia em especular sobre como deveriam ser esses espaços, principalmente os espaços de ayahuasca, considerando que não se trata de um remédio de farmácia.
Se fossem publicitários, dava pra dizer que era uma reunião de ~brainstoming~, mas como eram pessoas estudiosas de humanas, definiram assim:
Nosso objetivo ao pensar especulativamente sobre o futuro dos espaços de cuidado com ayahuasca é abordar de forma colaborativa questões como apropriação, comercialização, padronização e farmaceuticalização de psicoativos e plantas de poder.
Foram três sessões muito ricas. E, pra além do objetivo em si, eu não pude deixar de pensar na ironia que é um encontro acadêmico no qual as pessoas se unem pra jogar ideias, onde não tem certo e errado. Porque, no geral, quando pesquisadores se encontram é pra colocar suas certezas, e não sugerir dúvidas. Acho que por isso foi tão interessante.
Também não pude deixar de perceber como é difícil pensar tão livremente sobre possibilidades mil. Como escreveu a Octavia Butler, na citação que abre o artigo que resultou dos encontros:
Quero dizer que não existe uma única resposta para resolver todos os nossos problemas futuros. Não existe uma bala mágica. Ao invés disso, existem milhares de respostas, pelo menos. E você pode ser uma delas, se assim escolher.
Então, se tudo é possível e não existe certo e errado, pra qual direção a gente corre? Ou como sonham as escritoras de ficção científica? Como sonham os instrutores de zumba fit? Como sonham as pessoas que têm 20 mil dólares sobrando pra dar de gorjeta?
Especular sobre o futuro, sonhar (metafórica e literalmente), é o território mais livre que a gente pode acessar de graça. Mas ele pode ser limitado pela nossa realidade. E quando a realidade invade os sonhos, é que nem acordar obrigado diariamente pra fazer uma coisa que você não quer. Vai te definhando.
Muitas pessoas estão ocupadas demais pra sonhar ou especular sobre seu próprio futuro. Mas isso não acontece porque a pessoa decide parar de sonhar: é um projeto — que nem o projeto que desumanizou pessoas durante 300 anos de escravidão no Brasil. Em maior ou menor grau (cada um em seu contexto), a impossibilidade de sonhar afeta qualquer pessoa que precise pagar contas.
O Sidarta Ribeiro tem uma fala muito precisa sobre isso:
Com todos os estímulos que invadiram nossas vidas, a oportunidade de dormir e sonhar está cada vez mais ameaçada. A perda de sono pode levar ao déficit de memória, alterações de humor, depressão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e riscos de doença de Alzheimer. A perda de sonhos, por sua vez, pode levar a uma profunda falta de percepção de nossos desejos, medos e desafios, bem como a uma incapacidade de avaliar as consequências de nossas ações.
Nessa sociedade, que faz de tudo pra devorar nossas subjetividades com ketchup, sonhar e especular sobre o futuro é uma potente bazuca invisível de sobrevivência.
Fim.
Muito obrigado por chegar ao fim da newsletter #54. Parafraseando a Gloria, de Modern Family, eu me esforço pra escrever coisas que sejam a brisa que sopra nas suas costas, não o cuspe que acerta sua cara.
(Na série essa frase ficou mais legal, mas enfim...)
O fato é que já tem tanto descalabro no mundo, o planeta tá em chamas, as pessoas estão doentes e eu não quero ter que ficar lembrando disso toda hora, porque, como jornalista, esse já é o meu trabalho. Ao mesmo tempo, também não sou a Key do Big Brother que cria realidades dentro da cabeça e vive sozinha lá. Acredito que podemos, sim, estarmos conscientes do que tá rolando, mas também precisamos de boias que tornam mais fácil a nossa travessia nesse oceano de chorume.
Escrever é a minha boia, e, por mais que os afazeres do dia a dia tentem empurrar essa boia pra longe, eu sei nadar muito bem.
E eu adoro quando aparece alguém pra comentar alguma coisa que leu na newsletter, me faz ter a sensação de que eu não sou um náufrago.
Então, se quiser conversar, trocar uma ideia ou me contar quais são seus conhos, os canais estão abertos. É só responder a essa email ou me achar lá no meu insta pessoal ou no insta da PunkYoga.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor,
Nathan