PunkYoga #55: Stallone Cobra
Eu sentia meu corpo todo coberto por escama. Ao ouvir a música que tocava, deu uma vontade enorme de deslizar lentamente no ar como se eu tivesse me enrolando em um tronco invisível. Eu era uma serpente. E não tinha nada que eu pudesse fazer pra evitar quando o sentimento veio — ou até tinha, mas eu não quis, foda-se. Eu literalmente dançava conforme a música. E, enquanto meu corpo respondia às batidas sem precisar fazer esforço, eu pensava: como é bom ser uma serpente.
Obviamente, eu não estava no meu estado comum de consciência. Isso aconteceu no último trabalho de ayahuasca que participei. Fui com a Lari, uma amiga que nunca tinha participado de nenhuma cerimônia do tipo e pediu que eu a acompanhasse. Quando isso acontece, eu sinto como se me chamassem pra ser padrinho de casamento. Com a diferença de que eu não tenho que comprar um presente no valor de um Ford Ka.
A gente ficou sentado lado a lado durante o trabalho, mas a Lari não percebeu quando eu comecei a sibilar dentro da minha mente.
Foi logo no começo que eu percebi que os movimentos da minha serpente imaginária estavam totalmente sincronizados com a música. Quanto mais lenta e sinuosa era a música, mais lenta e sinuosa era a serpente. Era como se eu tivesse fazendo manobras com uma prancha nas ondas do som. Eu só precisava deixar fluir.
Ao perceber essa sincronia, veio na minha mente a imagem de uma naja sendo hipnotizada por uma flauta. Naquele momento, eu era uma naja sendo hipnotizada por uma flauta.
Já faz tempo que eu aprendi que as serpentes são representadas de forma muito injusta no imaginário popular. Elas são sempre associadas à maldade, à trairagem e à falsidade desde que, sei lá... Uma delas convenceu Eva a comer uma fruta que não era pra comer.
No cristianismo, a serpente é o próprio diabo.
Uma vez, em um livro que não vou lembrar o título nem fodendo, li uma coisa que dissolveu toda essa falsa impressão que eu tinha sobre as serpentes. O autor ou autora ou autore falava que, uma das interpretações possíveis para a expulsão de Adão e Eva do paraíso, era a seguinte: na verdade, a serpente não havia condenado o destino do primeiro casal — e da humanidade. Pelo contrário. Ela os havia salvado. Porque a árvore que aquela serpente guardava era a Árvore do Conhecimento. Ao comer a maçã desse pé, Eva adquiriu consciêcia sobre si e sobre o Universo. Ela morreu para o paraíso. Mas nasceu para o mundo.
A serpente era tipo o Morpheus de Matrix oferecendo: 1) a pílula azul para esquecer ou 2) a vermelha para despertar. Eva escolheu a vermelha. Igual ao Keanu Reeves. Eva, com um Rayban preto e sobretudo de vinil, movida pela curiosidade de qualquer ser humano, preferiu conhecer o real. E só assim a humanidade passou a ser possível.
Porque lá, parados no paraíso, onde nada cresce, nada morre, nada acontece e tudo permanece, Adão e Eva estariam condenados a viver sozinhos para sempre. Mas vida é movimento. E, se isso é verdade, então o paraíso é mesmo a morte.
A serpente libertou Adão e Eva.
Em muitas e muitas culturas, a serpente é um símbolo sagrado. Como lembrou o antropólogo Jeremy Narby, no livro A Serpente Cósmica, citando o Dicionário dos Sìmbolos:
A Serpente ignora a diferença de sexos, assim como todos os contrários; é fêmea e também macho, gêmea de si mesma, tal como tantos grandes deuses criadores que, na sua representação primordial, são sempre serprentes cósmicas (...) Assim sendo, a cobra visível só surge enquanto breve encarnação de uma Grande Serpente Invisível, causal e atemporal, mestre do princípio vital e de todas as forças da natureza. É um antigo deus primordial que encontramos no início de todas as cosmogêneses, antes de ser destronado pelas religiões do espírito.
Segundo o Narby, a cultura ocidental (as "religiões do espírito") rompeu com a serpente quando passou a adotar um ponto de vista exclusivamente racional, cartesiano, lógico, binário. Ou seja, aquele modelo de pensamento que menospreza tudo o que não pode ser medido em laboratório. Em sociedades assim, como a nossa, coisas como a consciência, o sonho, a intuição, o subjetivo e o mistério são alucinações. Ou seja, não são nada.
Mas, como lembra Narby, a serpente é o princípio da vida. Não por acaso, as fitas de DNA que guardamos dentro de todas as células podem ser representadas como duas serpentes se entrelaçando. Na verdade, é isso o que o antropólogo passa o livro inteiro tentando nos convencer, da ideia de que povos praticantes do xamanismo de vários cantos do planeta já conheciam a estrutura do DNA bem antes da invenção da genética. Não com a ajuda de microscópios, mas através da expansão da consicência provocada por plantas professoras, como a ayahuasca e o tabaco.
(Sim, ele encontrou várias similaridades de culturas não ocidentais que representam serpentes exatamemnte da forma como cientistas representam o DNA.)
Portanto, recuperar a serpente como símbolo de conhecimento e de princípio vital é também recuperar a nossa capacidade de enxergar o mundo para além da sua rigidez bruta, e emprestar a ele uma delicadeza sinuosa.
Por isso, pra mim, me ver como uma serpente, mesmo que só dentro da minha cabeça, não era nada pejorativo. Pelo contrário. Eu, incluisve, tenho uma serpente enrolada no braço, feita com tinta. Pra onde eu sempre olho quando preciso lembrar que tenho força.
Ao perceber que, naquele momento, na cerimônia de ayahuasca, não existia nenhuma diferença entre eu e uma serpente, minha mente me levou para várias lembranças nas quais quem vivia era a serpente e não eu.
Me lembrei de que, nos últimos dias, o Felipe, meu amor, me chamou a atenção por estar sempre andando de fone pela casa (como na foto), sem dar ouvidos pra ele, o que o fazia se sentir ignorado.
Apesar de achar que a invenção dos fones sem fios é a melhor coisa desde o cortador de legumes, isso pode não ser tão bom para quem convive e precisa falar com você. Eu trabalho em casa e realmente ando de fone o dia todo. Tô sempre ouvindo música ou algum podcast, e acho que os fones sem fio são perfeitos, porque fazem com que eu não precise andar com o celular no bolso como se tivesse fazendo uma visita guiada dentro da minha própria casa.
De fato, pra perceber que o Felipe quer falar comigo, ele precisa praticamente acender um sinalizador vermelho no meio da sala.
Mas, ao me ver como uma serpente, naquele dia, percebi uma coisa que nunca tinha me tocado antes.
Eu não uso fones porque eles são muito maneiros, e sim porque eles me isolam do mundo. Eles criam um bolha de proteção invisível entre mim e os barulhos do mundo. Isso porque, como uma naja, eu percebi que me sinto hipnotizado por qualquer barulho. Então, estar de fone é uma estratégia de sobrevivência. Foi a forma que eu encontrei para conseguir fazer minhas coisas sem perder o foco a cada cinco segundos. Os fones são a minha cera contra o canto das sereias.
Foi me vendo como uma naja de fone de ouvido que eu pude entender isso. Foi me vendo como uma naja de fone de ouvido que eu pude explicar para o Felipe que ele não tava sendo ignorado. Eu continuo amando ele, mas preciso ter foco se quero que minhas coisas ganhem vida.
Isso me fez notar que o autoconhecimento não tá só nas grandes compreensões sobre si mesmo. Não tá só naquelas revelações dramáticas que ressoam os traumas do nosso passado. O autoconhecimento também tá nos pequenos detalhes, no entendimento das coisas que a gente reproduz no dia a dia sem nem se questionar.
Perceber isso foi grandioso pra mim, porque assim eu consigo me planejar melhor. E, ao me entender melhor, eu consigo fazer com que o Felipe também me entenda melhor. E isso evita um monte de desencontro.
Me ver como um animal me ajudou a ver uma parte de mim que meu cérebro humano não compreendia.
No fim daquele trabalho de ayahuasca, cada um compartilhou um pouco do que sentiu durante a cerimônia. E eu compartilhei exatamente essa percepção que tive. Me deram o apelido de Mister Cobra. Achei ridículo. Amei.
Pra mim, compartilhar percepções pessoais é um pouco difícil, porque eu nunca sei como isso vai chegar nas pessoas. Pra muita gente, essas impressões e sensações que a gente tem sob um estado alterado de consciência são idiotice. Mas eu me questiono: se essas impressões e sensações são idiotice, como elas podem ter um impacto real na nossa vida?
Tipo, algumas pessoas podem achar que se ver como uma cobra é papo de maluco, mas, se isso me ajudou a entender e a resolver uma questão pessoal, como eu posso ignorar isso?
Quando eu penso que é difícil compartilhar essas questões, eu lembro que eu criei a PunkYoga exatamente pra isso. Afinal, onde mais eu publicaria um texto doido desses se não fosse na minha própria newsletter.
Esse é um espaço que não respeita planejamento editorial e não tem nenhum compromisso com nada, além de mim mesmo.
Outro ponto é que, cada vez mais são publicadas reportagens sobre o uso de psicodélicos para o tratamento de questões mentais, mas quase ninguém explica, de fato, o que os psicodélicos fazem na mente. Até porque é muito difícil escrever sobre algo que não se explica através da linguagem. Mas, na minha visão, quem se propõe a escrever sobre o tema pode, pelo menos, tentar. E esse é o meu espaço de tentativas.
Obrigado por me acompanhar.
Esse espaço também é completamente independente, então se você curtiu e quer ortalecer, é só falar bem da PunkYoga pros outros. Se não gostou, abafa! 💋
E, como sempre, se quiser trocar uma ideia sobre qualquer coisa, é só me responder esse e-mail ou me achar lá no instagram.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan