PunkYoga #59: The Jardel experience
Eu não pude ir no velório do Jardel, então tomei um punhado de cogumelos e fui ouvir David Bowie
Introdução
Eu não pude ir no velório do Jardel. Então, decidi tomar um punhado de cogumelos e ouvir a trilogia de Berlim do David Bowie em sua homenagem.
Foi o Jardel que me apresentou ao Bowie. Um dia, sentados no pátio da editora Abril, onde a gente trabalhava, eu pedi pra ele me explicar sobre esse cantor que eu só conhecia como entidade. Em um guardanapo, com empolgação, ele rabiscou um esqueleto das principais obras daquela discografia gigante e impenetrável pra um roqueiro juvenil. Naquele pedaço de papel, ele abriu um portal que me fez ficar éons ouvindo Bowie sem parar. Com um mapa a seguir, fica muito mais fácil. Mas uma parte da discografia me permaneceu misteriosa: a trilogia de Berlim, que conta com os discos Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979).
Claro que sendo proprietário de uma belíssima camiseta do Bowie, eu conheço os sons desse período pro caso da polícia do rock me parar na rua e me obrigar a falar três músicas. Mas eu não conheço tudo, e eu nunca tinha ouvido a trilogia em sequência, muito menos com atenção.
Acho que eu tinha medo de ouvir aquelas músicas estranhas. Hoje, eu sei que elas tavam esperando o momento certo pra serem ouvidas, e pra me dizerem algumas coisas sobre o Jards.
Capítulo 1: Low - lado A
A primeira parte de Low não tem músicas difíceis de gostar. São sons meio celebrativos, nem parece que foram feitos no período mais sombrio da carreira do Bowie, considerando que ele foi pra Berlim pra se livrar do vício em cocaína, levando o Iggy Pop na mala.
A quarta música do Low, Sound and Vision, por exemplo, poderia estar num disco dos Strokes, se eles pudessem botar o Brian Eno pra fazer backing vocal e produzir pra eles.
Dá pra entender perfeitamente a história que o Tony Visconti conta: de que o Bowie ligou dizendo que tava criando um álbum experimental com o Brian Eno, e perguntou o que ele, Tony Visconti, um produtor com quem já tinha trabalhado, podia trazer pra somar no disco. O Tony disse que tinha um Harmonizer, um processador de efeitos da Eventide, o segundo do tipo vendido na Inglaterra. “O que isso faz?”, perguntou o Bowie.
E o Tony respondeu:
“Ele arromba o tecido do tempo”.
E foi isso mesmo que aqueles sons fizeram. Conforme eu ouvia a primeira parte do disco, fui sendo transportado para outro momento da minha vida. Fui invadido por amor. Percebi que foi a generosidade do Jards que me fez ser fascinado pelo ofício do jornalismo, mas também foram seu cinismo e ironia que me fizeram perceber o quão amarga essa profissão poderia ser.
Durante quase quatro anos, o Jardel foi meu editor na revista Playboy, onde eu entrei como estagiário, em 2010, e saí como repórter, em 2013. Aprendi com ele a checar informações mil vezes, a fazer entrevistas em inglês mesmo com a voz tremendo e a ver o mundo com uma lupa à procura de pautas.
O Jards era muito atencioso, mesmo estando ocupado. Em um mundo no qual é comum que jornalistas de redação desliguem o telefone na cara de assessores de imprensa, eu vi mais de uma vez ele explicando pacientemente por que uma pauta como “o dia mundial da artrite reumatoide” não iria ser publicada na Playboy.
Nesse caminho de aprendizagem, sempre tive chefes imbatíveis, como o Jeferson de Souza e a Adriana Negreiros, que eram meus Dumbledore e professora McGonagall. O Jards tava mais pra uma mistura de Snape, com Hagrid e Sirius Black.
Ele não via nenhum problema em me incentivar a passar uma tarde inteira fazendo pregação com membros da Cultura Racional no centro de SP pra saber o que eles achavam do Tim Maia — eles amam.
Ele também não via o menor problema em me mandar pra favela da Maré, no Rio, pra entrevistar um traficante famoso. Tudo bem que eu não cheguei nem perto de conseguir, mas, pela primeira vez, dei plantão em porta de delegacia e ouvi histórias em primeira mão de pessoas que derrubam essa ideia de que o Brasil é um país gentil.
O Jards me via como um jornalista quando eu nem sabia usar a crase direito.
Capítulo 1: Low - lado B
Chovia quando começou a tocar Warszowa. Os raios eram tantos que a noite parecia dia. Percebi que o cogu começava a fazer efeito porque o som da música se misturava com o som da chuva em um casamento tão encaixado que eu cheguei a pensar que a água também caía no disco. Essa música abre o lado B do álbum, inspirado nas músicas ambiente do Brian Eno — o cara que criou o conceito de “música ambiente”. É uma atmosfera diferente, com tudo mais dark, e quatro músicas que te te pegam pelo pé e te arrastam pra dentro da noite.
Quando chegou em Subterraneans, que encerra o disco, eu já tava completamente rendido. Aprendi depois que essa música foi composta pelo Bowie para entrar na trilha sonora do filme O homem que caiu na Terra (1976). Mas o Bowie preferiu colocar ela no Low, depois que a produção do filme disse que o cantor teria que submeter suas músicas à avaliação junto com outras composições, mesmo ele sendo a estrela do longa.
“Como ousas?”, deve ter pensado o cantor, segurando sua echarpe.
Quando o disco saiu e foi um escândalo, o Bowie mandou uma mensagem pro diretor falando: “Isso é o que eu queria fazer para a trilha sonora do filme. Teria sido um gol maravilhoso”.
O diretor deve ter chorado de cócoras no banheiro.
O Bowie tinha essa capacidade de enfeitiçar as pessoas. O Jards também.
Quando eu digo “feitiço”, não tô me referindo à concepção potteriana de feitiços como Expecto Patronum ou coisa assim. Tô falando mais do conceito da psicanálise. Em uma reportagem sobre bruxaria que escrevi pro UOL uma vez, o psicanalista João Pentagna me explicou que:
"Existem palavras de ordem e palavras de poder. Uma palavra de ordem é um feitiço, e a de poder, uma espécie de contra-feitiço. A palavra pode tanto nos libertar quanto nos amaldiçoar."
Uma criança que ouve dos pais, por exemplo, que é um fracasso pode tanto acreditar nisso e se afundar, quanto querer provar o contrário. Nas duas hipóteses, ela vai estar presa àquela palavra.
O Jards nunca me direcionou nada do tipo, mas até hoje, quando vou escrever qualquer coisa, penso no que ele iria achar. É uma benção porque me obriga a repensar a minha escrita constantemente. Mas também é uma maldição porque me prendeu por muito tempo. Eu nunca teria coragem de escrever esse texto se o Jards tivesse vivo. Ele acharia ridículo.
Capítulo 3: Heroes
Quando começou a tocar Joe the Lion, a segunda música do álbum Heroes, eu ainda tava me sentindo bem. Senti como se tivesse dentro de uma capela com tentáculos dançantes saindo do teto, e isso era divertido. Mas aí começou a tocar Heroes, a música que dá nome ao álbum.
Aí, meus amigos, o bicho pegou… Os tentáculos que antes dançavam se voltaram contra mim.
Eu chorei. Chorei. Chorei.
Lembrei que a última vez que eu vi o Jards, na rua, por acaso, ele me chamou pra tomar um whisky na casa dele, como fazia com qualquer conhecido que cruzasse o seu caminho. Tempos depois, mandei mensagem cobrando o “nosso whisky”. Ele leu e nunca me respondeu. Nem pra dizer “vamo marcar”. E eu nunca cobrei. Por um bom tempo, considerei que ele só tinha me chamado pra beber por educação, o que me deixou profundamente desolado, porque eu realmente tava com saudade.
Eu não sabia que ele tinha uma doença séria. Soube por amigos, meses antes dele morrer. E eu nunca pude dizer nada do que eu escrevi aqui pra ele. De como ele foi importante pra mim. De como ter estado na presença dele me tornou uma pessoa melhor. E de como eu admirava a capacidade que ele tinha de decorar discografias e de transformar tudo em causos.
Though nothing, nothing will keep us together
We can beat them, for ever and ever
Oh we can be heroes, just for one day
Me lembrei que ele era fã de Maiakovski, mas nunca soube de nenhum poema escrito por ele. Eu queria tanto ter lido um poema seu, Jards. Eu leria até manual de instrução de aspirador de pó, se você tivesse escrito.
Quando Heroes acabou de tocar, eu tava completamente destruído. E desidratado. Pelas minhas contas, o cogumelo tava no pico.
Precisei fazer um intervalo da experiência, porque meu nariz entupiu de tanto choro. Eu precisava respirar.
A única coisa que pode me tirar de qualquer bad é a respiração. Então, me ocorreu um pensamento. E se eu não conseguisse mais respirar? Tecnicamente, eu podia respirar pela boca, mas a cada suspiro que eu dava, minha garganta secava como se eu tivesse engolido o deserto do Saara. E se eu não conseguir respirar? Seria meu maior pesadelo. Até parece…
O silêncio dominava. Eu pensei em encerrar a experiência ali. Não, eu não podia. Então, interrompi o silêncio com Sons of the Silent Age.
Lembrei de todas as pessoas que conviviam comigo e com o Jards. Puta que o pariu, como eu amava esse povo. Como eu os amo.
Mesmo depois de morto, você tá me ensinando. Mesmo depois de morto, você tá me ensinando sobre amor. Você não era um jornalista, você era um professor, a profissão dos mais generosos. Eu amei que isso foi destacado no obituário da Folha de S.Paulo.
De repente, comecei a ficar paranoico. Ouço uma batida na porta. Eu não tinha a mínima condição de falar com ninguém. As batidas não se repetem. Será que tinham existido? Fui ver que música era. Era Sense of Doubt.
Em The Secret Life of Arabia, a última música do disco, comecei a pensar neste texto. Eu tava viajando no núcleo central da galáxia, mas tava racionalizando o que iria escrever. Pensei que não poderia escrever o que sentia em cada música, como se fosse uma lista. Ficaria chato demais. O Jards jamais me perdoaria. Um texto tem que ser atraente, e tem que dar a sensação de que você aprendeu alguma coisa. O texto não poderia contar detalhadamente tudo o que eu vivi. Não. Eu teria que editar as melhores partes, como aprendi com você, Jards: transformar um texto cronológico em algo decente. Quando a música acabou, eu tava encolhido, me sentindo encurralado.
E aí, ouvi uma outra voz.
Não era o David Bowie. Era o Jim Morrisson. O álbum tinha acabado, e o Spotify colocou The Doors na sequência. Mas o Jim Morrisson não me seduziria. Eu tinha que terminar a experiência de ouvir os três álbuns inteiros do Bowie na sequência.
Vacilei. Eu não conseguia interromper o The Doors. Caralho, Jim Morrison, seu intruso maldito, ninguém te chamou aqui, cara. I can see your face in my mind começou a tocar e a me possuir.
Eu não conseguia parar o The Doors. Eu não conseguia respirar.
Capítulo 4: Lodger
Lodger saiu em 1979, dois anos depois dos primeiros discos da trilogia de Berlim. E há quem diga que ele só faz parte da trilogia porque o Bowie precisava dizer alguma coisa no lançamento do disco e todo mundo aceitou. Em 1979, ele nem tava mais em Berlim.
Enfim, tirando isso, eu não tenho absolutamente nada pra falar de Lodger. Eu continuava sem conseguir respirar, e eu continuava pensando merda.
Por um momento, me ocorreu que tomar um punhado de cogumelo, sozinho, e triste pela perda de um amigo, talvez, pudesse ter sido uma péssima ideia.
A única coisa que me afastava da sensação de falta de ar era escrever o que eu tava sentido. E eu tava me sentindo a Taylor Swift se enfiando em situações malucas só pra ter o que escrever. A diferença é que a Taylor Swift é milionária. Eu não conseguia respirar.
Resolvi chamar o Jim Morrison de novo. Começou a tocar Break on through. Eu não conseguia respirar. O Jim Morrison não podia me ajudar. Eu não deveria estar ali sozinho. E se eu morrer? Vão encontrar meu corpo seco caído na sala. Que mico! Como eu sou idiota! Meu marido não tava em casa. Meu amigo que mora ao lado não tava em casa.
Eu tava sozinho, só com a escrita. Quando eu escrevia, não pensava em morrer. Me agarrei à caneta como me agarraria a uma corda na areia movediça. Eu deveria estar em posição de lótus, respirando devagar e tentanto afastar pensamentos intrusivos. Eu sabia como fazer isso. Mas eu tava todo torto, escrevendo freneticamente.
Mesmo assim, minha letra tava bonita.
Não é possível, aquilo não tava acontecendo de verdade. Eu não tava sendo engolido por um bueiro. Toda hora me vinha na cabeça: “Você tá bem!”.
Uma vez, quando eu tive uma bad do tipo, o Felipe, meu amor, me levou pra caminhar. Eu dizia que tava passando mal e que ia morrer. Ele dizia: “Mas você tá andando, tá falando… Você tá bem”. Então, eu percebi que tava bem mesmo. Era só a minha mente demonstrando sua criatividade.
Mas ali, naquela hora, não tinha ninguém pra dizer que eu tava bem. Eu não conseguia respirar.
Capítulo 4: This is the end
Foi a primeira vez que eu precisei pedir uma intervenção. E eu sou privilegiado o suficiente de ter um amigo tão próximo que sabe lidar com a situação. Era madrugada. Liguei pro Vinil. Achei que ele pudesse estar acordado, mas atendeu com voz de sono. Eu não conseguia explicar o que eu precisava, e quando vi que ele tava dormindo fui invadido por uma culpa imensa. Não precisa vir. Vem logo pelamordedeus. Eu queria pedir ajuda sem parecer desesperado. Ele entendeu através da telepatia dos amigos, e veio. E só a presença dele já desbloqueou todas as minhas vias aéreas. Obrigado, amigo.
Essa parte deveria ser editada do texto final, mas acho importante dizer que eu cometi uma imprudência ao comer uma quantidade misteriosa de cogumelos (acho que era mais de 2g) em um momento triste. Não me julguem, ninguém aqui é o Alexandre de Moraes.
Por outro lado, eu também não sabia que lembrar do Jardel através do Bowie poderia me render tantas memórias. Eu não sabia que dando o play eu voltaria pro tempo em que eu descia pra fumar um cigarro com o Jards só pra ouvir ele fofocar, falar mal de alguém ou repetir uma história. Acho que eu nem gostava de fumar, na verdade, eu só queria absorver ele.
Nesses quase quatro anos em que trabalhamos juntos, eu só tenho a agradecer por você ter me lapidado como um bom jornalista, por ter me colocado pra entrevistar o Brian Wilson dos Beach Boys, por ter me feito gostar de whisky caro mesmo ganhando menos de um salário mínimo por mês e por ter sido “patologicamente tímido, morbidamente mudo, estupidamente passional e constantemente ridículo” ao meu lado.
Naquela noite, depois que meu amigo me salvou, depois que o cogumelo já tava no fim, e depois e eu percebi que minha mente tinha me pregado mais uma peça, resolvi ir pra cama ouvindo o Lodger. Quem sabe eu conseguiria terminar aquela experiência? Não rolou. Dormi na quarta música, Yassassin, um “reggae inarmônico”, cujo refrão ficou ecoando na minha cabeça por dias até eu descobrir, depois na wikipédia, que “yassassin” é um verbo turco que significa literalmente: "Que ele viva!".
Em uma noite de novembro com um céu triste, eu não sei mais se tô chorando pela sua morte, ou pela estranheza da vida. Pra onde vão as pessoas que a gente gosta quando elas deixam de ser matéria? Eu não sei se você ia gostar desse texto, Jards, mas eu sei que você ia gostar de saber que eu uso absolutamente tudo que você me ensinou pra escrever. E que você tá vivo em cada linha que eu esboço.
O fim.
esse texto exige um abraço, meus sentimentos, jards com certeza ficou feliz com essa homenagem experiência publicada <3
Querido Nathan, chegue me abraçar!
Seu texto foi uma experiência impactante e muito bonita. Obrigada por dividir esse amor conosco. Obrigada por esta edição.
Até breve.