Prefácio
Todo buraco negro já foi uma estrela. Não tô dizendo isso metaforicamente pra soar poético. É científico: todo buraco negro já foi uma estrela. O que acontece é que as estrelas têm uma espécie de reator nuclear dentro do coração. Ali, os átomos de hidrogênio se fundem e formam hélio, liberando uma explosão de calor e luz.
O Sol tá aí pra não me deixar mentir.
Só tem uma coisa que impede uma estrela de explodir completamente pra tudo que é lado. A gravidade. Ela vai macetando a estrela, modelando, e formando uma bolota, da mesma forma que minha avó faz com bolinhos de arroz. A gente acha que é só brilho e glamur a vida de uma estrela, mas a coitada passa a existência inteira nesse conflito entre querer se expandir e ser barrada pela gravidade.
Quando o coração da estrela dá sinais de cansaço — isto é, quando as reações de fusão nuclear vão parando de acontecer —, a gravidade vai apertando, apertando e apertando a estrela cada vez mais.
Mas antes de ficar fraca e perder todo o hidrogênio, se for uma estrela com muita massa, tipo dez vezes maior que o Sol, ela dá seu último suspiro de vida em uma explosão que Milton Cunha classificaria como “monumental”. São as chamadas supernovas.
Depois disso, a gravidade vence o cabo de guerra e amassa o que restou da estrela de forma tão violenta que toda a massa gigantesca que ela tem fica comprimida num espaço menor do que o ponto final do teclado. A estrela colapsa. Forma-se o que chamam de buraco negro.
Não se sabem muitas coisas sobre os buracos negros, mas uma coisa que sabem é que o núcleo desse monstro cósmico, onde tá concentrada toda massa e todas as informações que ele engole, se chama singularidade.
Capítulo 1 - Necrose aguda
Essa ideia da singularidade não nasceu do nada. Foi proposta pelo físico alemão Karl Schwarzschild. O cara tava no meio do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, e em vez de pensar em, sei lá, sobreviver… ele se ocupou de resolver as equações da teoria da relatividade geral do Eistein, que tinha acabado de ser publicada, em 1915.
A equação a que Schwarzschild se dedicou resolvia uma questão que Einstein não sabia como responder: o que acontecia quando uma estrela gigante esgotava seu combustível e começava a colapsar?
Li essa história no ótimo livro do Benjamin Labatut Quando deixamos de entender o mundo, que mistura realidade com ficção e traz histórias excelentes de subcelebridades luxuosas da ciência.
No livro, o autor lembra que, pro Einstein, no Universo, o espaço e o tempo são uma coisa só: o espaço-tempo, como se fosse um tecido que permeia tudo. Qualquer corpo que tem massa no Universo distorce esse tecido, como se você colocasse uma bola de boliche em uma cama elástica.
Mas, segundo os cálculos de Schwarzschild, a singularidade é tão pesada que ela não distorce o tecido do espaço-tempo. Ela RASGA. Escreve o Labatut:
A estrela se tornava cada vez mais compacta e sua densidade crescia sem parar. A força da gravidade se tornava tão forte que o espaço se curvava de forma infinita, fechando-se sobre si mesmo. O resultado era um abismo sem saída, separado para sempre do resto do universo.
O resultado é o buraco negro.
No livro, o Labatut conta que, ainda no campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, pouco antes de morrer por conta de pênfigo e gengivite ulcerativa necrosante aguda, o Schwarzschild confessou que a pior coisa sobre a singularidade não é a forma como ela altera o espaço nem os estranhos efeitos que tem no tempo. O verdadeiro horror, segundo ele, é que a singularidade é um ponto cego.
Como a luz não podia sair dali, nunca poderíamos vê-la com os olhos do corpo. Mas também não poderíamos entendê-la com a mente, já que a matemática da relatividade geral perdia sua validez na singularidade. A física simplesmente deixava de fazer sentido.
Diz que, depois de falar isso, o Schwarzschild refletiu: “Se esse tipo de monstro era um estado possível da matéria”, será que existia um “correlato na mente humana”?
Será que poderia existir um buraco negro da mente?
O físico foi advertido de que não era sábio projetar ideias da física em âmbitos completamente descolados como a psicologia. Mesmo assim, quando li isso, lembrei na hora de uma história que ouvi do escritor Lourenço Mutarelli…
Capítulo 2 - Desligando a consciência
Em um episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta, o próprio Lourenço conta a história do dia em que entrou em uma depressão profunda. Sim, a depressão tinha uma data de início, e ele sabia bem qual era, porque era a data do seu aniversário.
Ele tava em casa, quando uma amiga o convenceu a sair de carro pra comprar cigarros. Nisso, eles foram abordados por dois caras encapuzados, que jogaram eles pra dentro do carro, depois os vendaram e os amarraram e começaram a ameaçá-los de todas coisas, enquanto dirigiam pra algum lugar. Os caras diziam que iam matá-los, mas antes iam “se divertir” com eles. No meio do caminho, também começaram a brincar de roleta russa com um revólver apontado pra cabeça do Lourenço.
No desespero, o escritor lembrou que um amigo afeito às coisas místicas tinha dito a ele que era possível apagar a mente. Em uma situação difícil, se nós nos concentrássemos, era possível provocar a sua própria morte através do apagamento da consciência. Como se se criasse um buraco negro por geração espontânea e engolisse a sua vida.
O Lourenço resolveu tentar, porque ele preferiu provocar um suicídio psíquico do que esperar para ver o que aconteceria.
Daí os caras tiraram eles do carro, levaram pra dentro de uma casa, e quando tiraram a venda, uma multidão de amigos gritou: “Surpresa!”.
Era a festa surpresa de aniversário mais sem noção da história.
Depois disso, depois de ter sido engolido pela própria mente, o Lourenço ainda conseguiu confraternizar com os algozes ali na festa. Mas nos meses seguintes ele entrou em um processo de depressão profunda, a ponto de só comer “gelatina e caqui mole” e não conseguir subir as escadas da sua casa de tão fraco.
Ninguém tenta apagar a mente e sai ileso. O Lourenço foi engolido pelo seu próprio buraco negro.
Capítulo 2 - Os buracos negros têm cabelos macios
Não deixa de ser curioso que o Lourenço só virou escritor depois desse período. Talvez dois dos livros mais legais que eu já li na vida (O cheiro do ralo e A arte de produzir efeito sem causa) nunca tivessem existido se ele não tivesse passado por isso. O episódio deve ter deixado sequelas, claro, mas ele não culpa ninguém, e até reconta a história com nostalgia.
A questão é que existe uma saída pro buraco negro da mente, e o Lourenço conseguiu encontrar.
Na verdade, ao contrário do que se pensa, também pode existir uma saída pro buraco negro do Universo. Em uma palestra, o físico Stephen Hawking falou exatamente sobre essa relação:
A mensagem dessa palestra é que buracos negros não são tão negros quanto parecem. Eles não são as prisões eternas que nós pensávamos. As coisas podem escapar para fora dos buracos negros e possivelmente até para outro universo. Então, se você se sentir dentro de um, não desista – há uma maneira de escapar.
Acho que vale lembrar que o Stephen Hawking é o cientista que revolucionou a física moderna mesmo tendo o corpo todo paralisado por uma esclerose lateral amiotrófica. Ele viveu 55 anos com a doença, o suficiente pra ver o ator Eddie Redmayne ganhando um Oscar por fazer em 120 minutos o que ele fazia há meio século.
Segundo a teoria que o Hawking trabalhava antes de morrer, em 2018, certas partículas que ficam nas bordas dos buracos negros são capazes de armazenar informações, mostrando que nem tudo que passa por ali vai se perder num fosso sem fim.
Os físicos chamaram essas partículas de partículas macias, por isso dizem que os buracos negros têm cabelos macios, formando a metáfora mais escalafobética da ciência.
Capítulo 3 - Chão de estrelas
Eu nunca passei por um processo de depressão. Mas, durante a pandemia, no meio de um governo que queria matar a própria população, percebi que algo que sempre esteve distante de mim, de repente tava ali batendo na minha porta. Foi nesse período que senti necessidade de começar a fazer terapia.
Percebi que tinha alguma coisa errada quando eu só conseguia ir pra cama quando tava completamente esgotado, o que me levava a dormir muito tarde, e, na manhã seguinte, levantava sem vontade, por obrigação, mas queria mesmo afundar a cabeça no travesseiro até anoitecer de novo. Quem sabe nem precisar acordar…
Eu achava que o suicídio tinha a ver com um desencanto total com a vida, a perda da capacidade de enxergar beleza nas coisas. Mas, conversando com um amigo que lidou com isso a vida inteira, ele me explicou que, pra ele, a questão era outra. A questão era a dor. A pessoa sente tanto sofrimento que deseja acabar logo com aquilo. Pra não sofrer.
Definitivamente, passei bem longe desse sentimento. Mas acho que ninguém saiu ileso da pandemia.
***
Em 2019, os cientistas publicaram a primeira foto de um buraco negro. É um feito extraordinário, porque confirma o que Einstein só tinha previsto no papel.

Na verdade, a imagem mostra a sombra do buraco negro dentro do disco de material brilhante que a acompanha. A luz que ainda não foi engolida. Não vemos o buraco em si, nem a singularidade. Mas não deixa de ser um marco grandioso pra humanidade.
Pra fazer essa foto, mais de 200 cientistas do mundo todo, de diversos laboratórios, se envolveram. Porque não dá pra fazer um evento histórico sozinho.
E, hoje, olhando praquele tempo da pandemia, fiquei refletindo sobre essa colaboração. Pensei que nós até podemos conseguir observar nossos cantos escuros, mas pode ser que a gente precise de ajuda pra aprender a lidar com elas. E que, às vezes — se você não tem um bando de amigo sem noção que gosta de dar festas supresas —, as nossas relações são as únicas coisas que podem nos salvar de nós mesmos.
O fim.
Esse rolê do buraco negro ser estrela eu certamente vou meter em uma poesia minha. Te marco. Rsrs
Fala, Nathan!
Antes, devo dizer que sou muito grato à Vanessa Guedes por ter te conhecido.
Juntar cosmologia e psicologia com precisão científica e bom humor só contribui para você ter um estilo muito massa.
Eu nunca tive depressão. Em determinado momento da minha vida eu simulei ter depressão. Poderiam dizer que era apenas frescura e estariam corretos. Eu tinha e ainda tenho muito hidrogênio pra queimar. Nada de borda macia. Tá tudo muito claro.
Do Mutarelli conheço apenas os quadrinhos. Transubstanciação fez a minha cabeça.
Valeu, brow!