PunkYoga #62: Mental prisão
A mente como o remédio que vai nos curar ou como o veneno que vai nos fazer afogar em vômito
Capítulo 1
Confesso que fiquei um pouco frustrado quando o filme Assassinos da Lua das Flores, do Scorcese, perdeu todas as dez indicações ao Oscar de 2024, se consagrando como o maior perdedor da noite. Um filmaço daquele ser chamado de perdedor, imagina.
Mas, afinal, o que é uma mísera estatueta dourada e obscena para o cara que é a personificação da expressão ABSOLUTE CINEMA? Assim como Fernandona Montenegro, Martin Scorcese não precisa desta merda…
Enfim, gostei tanto do filme que me deu uma vontade desvairada de ler o livro que deu origem a ele. Mas aí por sincronia do universo — ou um bom planejamento de marketing da editora —, descobri que o cara que escreveu Assassinos…, o jornalista David Grann, tava lançando um livro novo chamado Os náufragos do Wager, um tijolo de 400 páginas, que eu li em cinco dias, lançando um grande dedo do meio pro meu déficit de atenção.
O livro é uma obra-prima da não-ficção. Ele conta a história do naufrágio de um navio inglês chamado Wager que, em 1741, tentou atravessar o Cabo Horn, a pontinha da América do Sul, a passagem marítima mais perigosa da Terra, o único lugar do planeta em que as águas correm 360 graus. Um lugar onde as correntes são monstruosas. Era lá que os caras queriam passar, só pra roubar ouro dos espanhóis. Em uma missão oficial do império. Pirataria legalizada.
Pra escrever o livro, o Grann se baseou, sobretudo, nos diários de bordo dos tripulantes, que eram documentos oficiais da marinha. “Esses diários de bordo também estavam se tornando a base de histórias de aventura populares para o públigo geral”, escreveu o jornalista.
“Alimentada por gráficas, pela crescente alfabetização e por um fascínio por lugares desconhecidos da população europeia, havia uma demanda insaciável pelo tipo de narrativa que marinheiros há muito teciam no castelo de proa.”
Com esse material nas mãos de um autor habilidoso, o livro faz com que até o Fofão da Carreta Furacão se sinta um marinheiro inglês do século 18, parece que você tá dentro do barco. A apuração é afiada, o estilo é elegante, a maneira como ele constrói a tensão é invejável. Quem me dera escrever que nem esse cara um dia, nossa senhora…
Depois de afundar, os sobreviventes passam a viver numa ilha. Então, o que começa como um relato de navegação se torna um tratado sociológico que mostra o que acontece quando a ordem social se dissolve e a barbárie toma conta, com motins, assassinato e canibalismo. Os homens heroicos que carregam os “valores civilizatórios” da Inglaterra se mostram hienas carniceiras e depravadas.
Maltrapilhos, magros e provavelmente fedendo a Cheetos requeijão há meses, parte da tripulação sobrevivente ainda consegue voltar pra terra da rainha, mas lá precisam explicar direitinho o que aconteceu, porque, depois de tudo, ainda correm o risco de serem enforcados se descobrirem algum crime.
E é aí, no final, que começa a parte boa, porque mostra como os mitos de uma nação são forjados. “Assim como as pessoas moldam suas histórias para servir a seus interesses, revisando, apagando e enfeitando, o mesmo acontece com as nações”, escreveu o Grann.
As histórias escabrosas, incluindo a forma cruel e injustificável como os marinheiros tratavam os indígenas, foi simplesmente apagada da história.
“Desenterrar e documentar os fatos incontroversos do que acontecera na ilha — saques, roubos, chicotadas, assassinatos — teria enfraquecido a alegação central que baseava a justificativa do Império Britânico para dominar outros povos, a saber, que suas forças imperiais, sua civilização, eram inerentemente superiores. E que seus oficiais eram cavalheiros, não brutos.”
O livro termina com a inegável conclusão de que o poder dos poderosos está nas histórias que eles contam. Mas tão importante quanto isso é o que não aparece nos livros. “Os silêncios sombrios que impõem, as páginas que arrancam”, formula o Grann.
Foi esse tipo de distorção que ajudou a criar a lavagem cerebral que nos faz acreditar que os europeus, a ciência dos europeus, a beleza dos europeus e o peido dos europeus são superiores. E são essas narrativas que aprendemos, ainda que falsas, as responsáveis por moldar aquilo que a gente se torna.
Capítulo 2
São essas narrativas que aprendemos, ainda que falsas, as responsáveis por moldar aquilo que a gente se torna. Essa foi uma das ideias que os Daniels passaram na palestra que eles fizeram no SXSW (tem no Youtube, traduzido ou com legenda).
Eu amei a palestra porque eles tão meio nervosos e emocionados como se não fossem donos de sete Oscars. Falam dos empréstimos estudantis que fizeram, dos favores que já pediram na vida e dos vídeos imbecis de internet que eles adoram, nos fazendo lembrar da nossa própria humanidade.
Mas o que mais pegou pra mim foi essa ideia, que eles também botaram no filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, de como as histórias em que a gente acredita vão definir a nossa identidade.
Os Daniels citam o exemplo do programa dos 12 passos dos alcoólicos anônimos. Eles lembram que — depois do primeiro passo, que é aceitar o problema —, o segundo passo é acreditar em uma força superior a nós mesmos. Não precisa ser Deus. Mas é bom que seja alguém ou algo que nos conte uma história responsável por nos situar no mundo.
O ponto não é a religião, mas a narrativa, que pode ser inclusive o ateísmo.
Eles lembram que o efeito placebo também serve como um bom exemplo disso. Porque o placebo escancara o poder que essas histórias têm sob as nossas mentes.
Sempre que penso nisso lembro do estudo conduzido pela Fernanda Palhano-Fontes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre os efeitos da ayahuasca. Das 14 pessoas com depressão severa que tomaram o chá no estudo, 9 relataram melhorias que persistiram por até sete dias depois da experiência (não houve acompanhamento depois disso). Enquanto isso, das 15 que tomaram placebo (ou seja, uma solução marrom), 4 melhoraram…
Veja bem, 4 pessoas melhoraram de uma depressão de difícil tratamento. Tomando água.
Não dá pra desprezar essa informação. Mas, se isso é possível, o que acontece quando a história em que acreditamos não é tão saudável assim?
Afinal, que histórias estamos contando para nós mesmos? Ou pior, que histórias estão nos fazendo acreditar?
Capítulo 3
“Que histórias estão nos fazendo acreditar?” é o tipo de pergunta que me levou a cursar a faculdade de filosofia por um semestre, em 2013. Tive que abandonar o curso, coisas da vida, mas livros como Os Náufragos do Wager continuam me acendendo esses questionamentos. Talvez, por isso, tenha devorado ele como uma necrobactéria.
Esses tempos, mesmo entupido de trabalhos pra fazer, eu praticamente implorei pra queridíssima Luiza, que era editora-chefe da Galileu, pra me deixar escrever sobre e a ideia de que o Sol pode ser um corpo consciente (dá pra ler aqui). É uma corrente filosófica chamada pampsiquismo, que aponta que qualquer sistema complexo pode ser dotado de consciência, não se limitando apenas ao cérebro, mas também, por que não?, às estrelas, que possuem campos eletromagnéticos, assim como o nosso órgão pensante.
Gosto especificamente de duas coisas nesse texto. Primeiro, de tentar responder objetivamente a uma pergunta que seria etérea demais até pro Salvador Dalí, que é: tá, se o Sol tem consciência, então sobre o que ele pensa?
Esse exercício mental poderia inspirar poesias do Alberto Caeiro e reggaes do Planta & Raiz, mas inspirou um biólogo chamado Rupert Sheldrake, que explica:
Em primeiro lugar, o Sol está presumivelmente preocupado com a regulação e preservação de seu próprio corpo, o próprio Sol, e seu corpo estendido, o Sistema Solar, até a heliopausa. Dentro dessa fronteira eletromagnética, todo o Sistema Solar, a heliosfera, é uma espécie de organismo com o Sol no centro. (…) A mente do Sol pode estar intimamente preocupada com a modulação do Sistema Solar, influenciando-o através da intensidade do vento solar, através de erupções solares direcionais e, mais dramaticamente, através de ejeções de massa coronal despejando bilhões de toneladas de partículas carregadas em direção a qualquer coisa em seu caminho. O Sol pode estar percebendo e influenciando o que acontece no Sistema Solar através de seus campos eletromagnéticos.
Eu já achava que tinha ido longe demais quando me interessei pela hipótese Gaia. Mas imaginar o Sistema Solar inteiro como um organismo complexo me deixou contemplando o nada por vários minutos.
Tipo, você já viu como se forma uma aurora boreal?
Não prova nada, mas é lindo.
A segunda coisa que mais gostei no texto foi ter apresentado um contraponto que conseguiu me deixar mais catatônico do que o próprio pampsiquismo: que é o conceito de ilusionismo.
Para o filósofo Keith Frankish, não faz sentido a consciência estar em outros lugares além do cérebro, porque a consciência não existe.
Apenas.
"Pensamos que [a consciência] existe porque estamos sob uma espécie de ilusão sobre nossas próprias mentes, uma visão que chamo de ilusionismo", disse ele, numa entrevista à Popular Mechanics, explicando que, depois de ampliarmos significativamente o poder do nosso cérebro, os seres humanos desenvolveram truques complexos, como a automanipulação.
Desculpe a autocitação aqui, mas eu não sei explicar isso de outra forma:
Para Frankish, essas habilidades nos levaram a uma convicção ilusória de que possuímos uma mente consciente unificada, uma identidade singular e até mesmo uma alma. Mas o filósofo argumenta que toda essa percepção poderia ser uma construção ilusória da mente humana, que tende a projetar uma narrativa coesa sobre nossa própria existência.
O foda é que, se essa ideia de automanipulação estiver certa, ela pode, inclusive, nos enganar ao nos fazer acreditar na teoria do ilusionismo.
Ou seja, é melhor eu parar de usar psicodélicos, porque esse papo não vai nos levar a lugar nenhum…
Mas não deixa de ser interessante pensar que a nossa mente pode absorver qualquer história minimamente convincente que possa nos envolver, sejam as histórias dos livros de história, sejam os padrões e as regras que nos enfiam pela goela durante a vida toda, sejam as ficções que contamos para nós mesmos.
Que histórias estão nos fazendo acreditar?
Ter consciência sobre isso parece ser a única forma de nos emancipar da “escravidão mental” que o Bob Marley cantou em Redemption song, e usar a mente como o placebo que vai nos curar, não como o veneno que vai nos fazer afogar em vômito. Afinal, "ninguém além de nós mesmos pode libertar as nossas mentes”.
O Fim.
Posfácio
Eu levei umas quatro semanas pra escrever esse texto…
Acontece que, nesse meio tempo, eu arranjei um emprego novo, fui pro Rio ver a Madonna, comecei o tai chi chuan e produzi mais que vaca leiteira. Eu não queria que a newsletter fosse mais uma coisa que eu produzisse por obrigação, então esperei pra poder escrever com calma, o que nunca aconteceu, então fui escrevendo aos poucos mesmo, pedaço por pedaço.
O que eu acho engraçado é que, mesmo nesse tempo sem publicar, continuou chegando gente nova aqui (não disse quantas), o que me deixa muito feliz. Boas-vindas a vocês! É um prazer poder pagar de maluco pra outros malucos.
E é sempre bom lembrar: a PunkYoga é uma newsletter quinzenal, enviada às sextas (essa veio no sábado, mas foi excepecional, porque não respeito minhas próprias regras). A próxima edição é uma microdose, mais curtinha, eu prometo, só com algumas indicações.
Se você chegou até essa linha, obrigado. Espero ter feito seu tempo valer a pena. E lembre-se: não deixe sua mente acreditar em tudo que você lê em qualquer newsletter.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan
Eu pirei muito no Lost City of Z do David Grann qdo saiu. Como você disse, parece que você está lá vivendo o inferno da expedição e a decepção do retorno ao mundo "civilizado" na msm medida. Foda.
Resolvi dar uma olhada na sua news por causa do nome: punk+yoga, combinação excelente! Amo ambos.
E daí me deparo com esse texto 🤯🤩. Adorei! Eu sou uma das recém chegadas e já estou virando fã.