PunkYoga #68: Samba-reggae dos faraós
O presidente do Olodum me ensinou por que devemos despertar para a cultura egípcia no Brasil — eu falei faraó?
Capítulo 1
Uma vez, em um podcast que já não lembro qual, ouvi a história de que, para os antigos egípcios, não existia separação entre a espiritualidade e a vida cotidiana. Ambas se entrelaçavam como serpentes.
Na hora, o que me veio à cabeça foi um cenário de realismo mágico, meio Cem anos de solidão, com tapetes voando e mortos convivendo com os vivos como se nada fosse. Mas, até onde se sabe, os antigos egípcios viviam sob o planeta Terra, respeitando as mesmas leis da física que existem hoje. Então como isso poderia ser possível?
Tipo, como assim a espiritualidade deles não era uma coisa que só se exercia no domingo de manhã quando eles eram forçados a ir à missa pela mãe?

Capítulo 2
Em 2020, fui convidado pelo meu querido ex-chefe da revista Playboy, o Jefão, a escrever os perfis de um livro sobre educação feito pela ONG Educare. Foi um trabalhão.
Explico: eu tinha que ligar para pessoas específicas, perguntar sobre a vida delas e escrever trinta belíssimos textos em trinta curtíssimos dias. Teve uma hora que eu meio que surtei, e achei que seria mais respeitoso se dissesse que não iria conseguir terminar. Afinal, sou humano.
O que me impediu de ter um colapso mental foi poder entrar em contato com pessoas muito interessantes, com as quais eu jamais poderia ter trocado uma ideia se não fosse por esse trabalho.
Uma dessas pessoas interessantes foi o João Jorge — que na época era presidente do Olodum, e que, em 2023, foi convidado pelo Lula para assumir a presidência da Fundação Palmares. Em uma conversa de quase uma hora e meia, eu devo ter feito umas três perguntas, o resto do tempo passei ouvindo com atenção tudo o que ele tinha pra me dizer.
Na época, eu tava mais atento aos marcos da vida dele pra construir a história. Quando nasceu? Como eram os pais? Como entrou no Olodum? Mas ele tava mais preocupado em me passar dois conceitos que são a base da vida dele, não só como advogado, nem como presidente de um dos maiores blocos afro do Brasil, mas como educador. Os conceitos de igualdade e justiça.

Capítulo 3
Pra me explicar sobre isso, ele me contou sobre a Revolta dos Búzios (ou Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates), que pedia o rompimento com Portugal e o fim da escravidão, em 1798.
A revolta terminou de forma sanguinária, com cabeças arrancadas. Os degolados foram os líderes: o soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, o marceneiro e militar Lucas Dantas do Amorim Torres, e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus Nascimento. Todos negros.
O João Jorge me disse:
“Sabe qual foi o crime que esses personagens da Revolta dos Búzios cometeram? Eles pregaram que haveria liberdade no Brasil, que haveria aqui um governo democrático. Mas ficou decidido que eles deveriam ser mortos e esquecidos para que a infâmia da democracia e da igualdade não pudessem acontecer neste país. Assim como Portugal, o Brasil é um país que se especializou em esquecer histórias.”
Um dos pilares do Olodum é justamente lembrar desse passado, educar a sociedade sobre passagens da história como essa. E a forma que o Olodum escolheu para educar foi através do surdo, do agogô e do tamborim.
“A educação é o eixo, o coração do Olodum”, disse o João Jorge. “Por meio da cultura e da política, o Olodum difunde diversos conceitos, e suas músicas politizadas alcançam um público muito maior do que alcançariam se essas ideias permanecessem restritas aos livros.”

Capítulo 4
O João Jorge me explicou que a Revolta dos Búzios é um dos pilares do Olodum.
Outro pilar é o panafricanismo, presente nas cores do grupo, que traz a ideia de valorizar e resgatar as culturas africanas, entre elas, a do Egito, o qual muita gente não lembra, mas também fica na África.

Não que as pessoas sejam desmioladas, mas a forma como somos educados dificulta associar a ideia de uma civilização ultra-avançada com pessoas negras. Somos tão incapazes de associar uma sociedade avançada a pessoas negras que, quando um cara, na década de 1960, disse que as pirâmides só poderiam ter sido construídas por alienígenas porque são muito complexas, muita gente acreditou.
Apesar do afrofuturismo e do Pantera Negra, a imagem geral que as pessoas têm da África (ainda) é de miséria e fome. Além disso, fica difícil lembrar da negritude do Egito quando a imagem que as pessoas têm da Cleópatra é a Elizabeth Taylor.
Pois foi nesse contexto, em 1987, que o Olodum lançou o icônico disco Egito Madagascar, que traz aquele que é considerado o primeiro samba-reggae, Faraó (Divindade do Egito), imortalizado na voz da Margareth Menezes — eu falei faraó?
Assim, de uma forma que nem Osíris sabe como aconteceu, todos os anos, há quase 40 anos, as pessoas saem fantasiadas pelas ruas, não só de Salvador, mas de todo o Brasil, saudando a cultura egípcia e berrando êêê faraó em uníssono com os braços jogados pro alto e o coração em folia.
Também foi graças às homenagens do Olodum ao povo egípcio que hoje temos o prazer de contemplar essa maravilha de vídeo que registra o momento exato em que o samba-reggae conquistou as pirâmides:
Capítulo 5
Na nossa conversa, o João Jorge passou a me lembrar da importância do Egito para a humanidade.
Ele me falou de Imhotep, considerado o primeiro cientista da história de quem sabemos o nome, conselheiro do rei Djoser, que reinou cerca de 5 mil anos antes do Michael Jackson cantar They don’t care about us com o Olodum no Pelourinho.
O Imhotep é creditado como o projetista da icônica Pirâmide de Saqqara, o primeiro grande edifício de pedra da humanidade, e as contribuições que ele deu ao conhecimento egípcio foram tão significativas que depois ele foi consagrado como deus da medicina e da sabedoria.
Parece impressionante, mas acho que o que mais pesa no currículo do Imhotep é o papel de vilão no filme A Múmia.
Não que a gente precise ser convencido de que o Egito foi uma civilização importante, mas é legal mesmo lembrar de algumas coisas.
O Isaac Asimov — escritor de Eu, robô e da saga Fundação — tem uma coleção de livros sobre a “história universal”, que traz um volume sobre o Egito.

Nesse livro, ele fala umas coisas interessantes. Tipo que os egípcios (e muitas outras civilizações), até por volta de 2.800 a.C., usavam o calendário baseado na Lua, atribuindo 30 dias a cada mês e acrescentando 5 dias extras ao final do ano. Mas aí algo mudou:
Os sacerdotes encarregados do regadio estudaram cuidadosamente o nível das águas do rio [Nilo], dia após dia, e descobriram que, em média, as cheias se produziam a cada 365 dias, e por isso os habitantes do Nilo foram os primeiros a elaborar um calendário baseado no ano com essa quantidade de dias. Cada ano era formado por doze meses, já que eram doze ciclos completos de mudanças nas fases da Lua, e porque se desenvolviam em um período pouco inferior a um ano.
Por cerca de três mil anos não seria inventado nada mais preciso.
Foi só em 1.582 que o Papa Gregório promulgou o calendário gregoriano, esse que a gente usa hoje, com meses que homenageiam os imperadores Júlio César e César Augusto. O calendário gregoriano também é inspirado no egípcio. A diferença é que, agora, em vez basearmos nossos dias nos ciclos da natureza, baseamos nos boletos que temos para pagar (dia 10 eu recebo, dia 25 pago o cartão, dia 20 pago o aluguel, e tudo recomeça...). O que era uma organização da natureza, virou uma organização do dinheiro.
As águas do Nilo, aliás, não inspiraram só o calendário.
Como lembra o Asimov, as inundações anuais do rio apagavam os limites entre as terras de propriedade individual. Eles precisavam pensar então em uma fórmula para voltar a definir esses limites. Isso, aos poucos, foi dando origem ao que a gente chama de “geometria”, que significa “medição de terra”.
“E aí voce me pergunta: ‘Mas tudo isso pode ser ensinado na Bahia?’”, me indagou o João Jorge, respondendo a si mesmo: “Pode e deve! Nós precisamos parar de ter uma educação que começa em 1500, que começa com Portugal e Espanha.”
De fato, a nossa educação é tão baseada na lógica ocidental que a gente se considera parte do ocidente, e tentamos desesperadamente imitar sua arte, sua cultura e seus modos, desprezando tudo que é diferente disso.
A questão é que os norte-americanos e os europeus não consideram o Brasil parte do ocidente, nós não fazemos parte desse clube. Nós somos o Chico Bento no shopping — sendo que o Chico Bento não precisa do shopping.
A nossa cultura é tão baseada na lógica ocidental que o próprio nome “Egito”, na verdade, é grego. Não era assim que o povo do Nilo se referia a si mesmo. Eles chamavam o “Egito” de Kemet, que significa "Terra Negra", por causa do solo fértil depositado pelo rio.
Aliás, vale lembrar que nem o conceito de negritude existia naquele época. Mas, ao resgatar a milenar cultura egípcia na Bahia moderna, o Olodum nos lembra que: 1) existiu um passado antes da escravidão, sobre o qual não se fala; 2) que o modelo ocidental não é a única forma de vida possível. Existem outras.
Considero essa uma das ideias mais poderosas que podem existir, porque é quando a gente questiona esse modelo ocidental — o combo capitalismo, cristianismo e patriarcado — que a gente poupa sofrimento desnecessário.
Como essas pessoas e culturas que foram (e são) dominadas percebem o mundo? Como elas contam o tempo? Como elas interpretam gênero e sexualidade?
Como gay periférico (ainda que branco e cis), esses questionamentos foram essenciais pra minha vida — e me economizaram na terapia.
O Olodum nos lembra disso a todo tempo.

Capítulo 6
Conta a mitologia egípcia que Osíris foi morto por seu irmão mais novo, Set — que possivelmente é uma personificação do deserto árido e impiedoso, sempre ameaçando a vegetação caso a cheia do Nilo não ocorra. A esposa Ísis encontrou o corpo de Osíris e conseguiu trazê-lo de volta à vida. Mas Set o havia esquartejado, e uma parte do corpo estava faltando. Incompleto, Osíris não pôde continuar governando os vivos e desceu ao mundo subterrâneo, se tornando o rei das almas que chegavam ali depois de morrer. Seu filho, Hórus, geralmente representado com cabeça de falcão, vingou o pai e assassinou Set.
Sabe onde essa história também aparece? Na letra de Faraó (Divindade do Egito).
Sim, é a mesma história de O Rei Leão e de Hamlet, mas o foco aqui é o Olodum.
O Asimov escreve que:
A narrativa também se encaixa no ciclo do Sol. Osíris representava o Sol poente, morto pela noite (Set). Hórus é o Sol nascente, que, por sua vez, mata a noite. O Sol agonizante desce ao mundo subterrâneo, como Osíris.
Em um vídeo do seu canal, a Aza Njeri, pesquisadora de filosofias africanas de quem eu sou fã, fala sobre outra deusa: Maat, a deusa do equilíbrio e da justiça.
Ela cita um livro (o corte não mostra qual) que fala que Maat também era um conjunto de princípios que guiava a vida do povo e dos governantes de Kemet. Esses princípios ajudavam a manter a ordem e a harmonia em todas as áreas da vida — na família, na comunidade, no governo, na relação com a natureza e na espiritualidade.
Esse conjunto configurava um sistema filosófico considerado uma ciência da verdade, valorizando elementos fundamentais como verdade, ordem, equilíbrio, harmonia, justiça, retidão e reciprocidade, os quais, segundo a tradição, teriam sido entregues ao faraó diretamente pelo ser supremo Rá, o deus Sol. O grande objetivo da sociedade kemética era a manutenção de Maat, representado na figura da deusa que lhe emprestou o nome, sendo este um pilar fundamental do equilíbrio social.
Esses exemplos transcendem o fantástico e têm implicações na vida cotidiana, mas a mente ocidental (que orienta a nossa sociedade) não poderia suportar interpretações como essas, porque a mente ocidental, que segue a lógica racional, só considera realidade aquilo que é material, aquilo que vê ou que pode tocar.
Mas outras culturas (como diversas africanas além dos egípcios, orientais e indígenas) têm uma visão mais ampla da realidade, englobando dimensões como os sonhos, a intuição e a espiritualidade — coisas que o racionalismo científico cospe na cara, porque não podem ser analisadas dentro de um tubo de ensaio no laboratório, mas o fato de não poderem ser analisadas no laboratório só significa que as ferramentas ocidentais são limitadas, não significa que essas coisas não possam ser consideradas.
É por isso que os egípcios não faziam separação entre a espiritualidade e a vida cotidiana.
Porque eles (e muitos outros povos) tinham uma percepção diferente sobre o que é espiritualidade. Uma percepção mais próxima das filosofias da natureza, e menos do conceito de religião. Espiritualidade não é religião. Mas como refletir sobre isso sem educação?
Sempre ouvi a ideia de que a educação liberta, mas nunca assimilei isso tão bem quanto ao conversar com o João Jorge. Entendi que a educação, seja ela através de um livro ou de um tambor colorido, não é limitada ao horário da escola, a educação, assim como a espiritualidade, é uma dimensão primordial para libertar nossas mentes. Ou, como me disse o João Jorge, “a educação é uma forma de potencializar riquezas”.
O fim.
Posfácio
Eu fiz essa entrevista com o João Jorge em 2021, mas só agora consegui falar sobre ela. Durante esses anos todos, ela ficou me rondando, vinha e sumia da minha mente, pedindo um texto no qual eu pudesse fluir mais, mas eu nunca tava pronto pra reescutar a entrevista de mais de uma hora.
Fiz isso recentemente.
E, desta vez, aproveitei o mesmo estado de espírito que me encontrava naquele tempo para escrever agora, com a mesma empolgação da Margareth cantando êêê faraó.
Também reli o perfil que escrevi para o livro da ONG Educare, lançado no ano passado (com uma roda de conversa mediada por mim). E achei ótimo! Além do João Jorge, eu tive o prazer de entrevistar o velejador Lars Grael; o André Palhano, criador da Virada Sustentável; o Sérgio Petrilli, fundador do GRAAC; a cineasta Daiane Rosário; meu querido Luis Fernando Tófoli, pesquisador psicodélico; e mais um monte de gente legal.
É um livrão de capa dura, fotos belíssimas e gigante. Quase literalmente. Porque mal cabe na minha estante. Tem no total 30 perfis com pessoas ligadas à educação e ao futuro, que foram dividios entre mim e a jornalista Angélica Santa Cruz, da piauí.



Até onde sei esse livro não vende em lugar nenhum, foi feito pra distribuição em instituições. Então, talvez, você nunca o veja de forma física (só online). Mas tenho cinco cópias em casa, e queria muito dar elas pra pessoas que podem curtir.
Então, se você é uma dessas pessoas, me responde esse e-mail, me sinaliza nos comentários ou me acha lá no Insta. Se topar pagar o frete (uns R$ 40) — porque, afinal, se eu for pagar o de todo mundo eu não consigo comprar meu café em grãos, me ajude a te ajudar! — eu envio pra você.
É isso! Obrigado por ler o texto mais longo que já escrevi em uma edição única.
Nos vemos daqui a quinze dias. Se sentir saudade, dá pra ouvir a última edição da Microdose de PunkYoga no Spotify.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan
que texto precioso.
Xiii, gente, cheguei atrasada para me candidatar ao livro.
Amei o texto. E viva Olodum!
Um beijo.