PunkYoga #70: Música alienígena
Não é o som da Thai que te abduz, é você que agarra ele pelo colarinho e suplica: “Me leve com você nos seus sonhos mais loucos”
Capítulo 1
Em uma das primeiras vezes que ouvi a Thai tocando eu tava lutando comigo mesmo. Era uma cerimônia com ayahuasca, minha cabeça rodava por galáxias distantes, talvez eu estivesse passando mal, talvez eu estivesse indo por um caminho meio obscuro do qual eu não soubesse como voltar. Mas não foi uma pessoa que apareceu pra me resgatar. Foi a música da Thai.
Na hora o batuque tava forte. A Thai tocava com a Marilua a poucos metros de onde eu tentava me manter sentado. Meu corpo insistia em tombar, mas aqueles batuques agarraram minha mente como se fossem um lança-gancho e me puxavam para me manter na posição. Não sei quantos minutos eu fiquei nesse vai-não-vai.
De repente, o batuque acelerado deu lugar à voz da Thai que naquela hora me serviu de cama. Ela cantava uma música chamada Mensajera.
Meses depois, quando a Thai lançou seu primeiro álbum, Além da visão, ouvi essa música de novo em casa, e meu corpo se teletransportou diretamente para aquele momento. Foi assim que eu descobri que as músicas dela têm essa capacidade alienígena.
Capítulo 2
Há pouco tempo, assisti a uma aula sobre ficção sônica da Anti Ribeiro. Ela usou como base o livro Mais brilhante que o sol, no qual o Kodwo Eshun fala de artistas que usam a música como uma forma de abdução ou teletransporte.
O autor usa de exemplo artistas como Sun Ra e Alice Coltrane, que misturam jazz com uma abordagem cósmica. Apesar da diferença de estilos e de contexto, acho que essa intenção transcendental também tá na música da Thai.
Um dia ela veio aqui em casa pra conversar sobre o disco que havia acabado de lançar. Disse que foi muito bom trabalhar com o produtor, Hércules Lacovic — ele ajudou a criar toda a ambientação do álbum. Na última faixa, Mistérios do amor, por exemplo, ela comentou que essa atmosfera dá a sensação de que uma nave espacial pousa sobre nossas cabeças e nos leva pra dar uma volta. Mas eu discordo. Pra mim, essa nave chega bem antes, já na primeira música, Processo, e segue voando pelo disco inteiro.
A nave chega e fica ali, pairando no alto, como se nos observasse em silêncio. Parada, mas impossível de ignorar. Assim como ninguém conseguiria fingir que não viu um ovni, também não dá pra ficar imune ao dedilhado do violão, ao coro iridescente, à percussão hipnotizante, às ondas sonoras que a Thai movimenta. Quando você se dá conta, já está completamente envolvido. E finalmente entende. Não é a música que te leva embora — é você que, seduzido, agarra ela pelo colarinho e suplica: “Me leve com você nos seus sonhos mais loucos.” Não é uma abdução. É uma entrega.
Essa identificação talvez venha da sinceridade das letras. Mistérios do amor, por exemplo, a Thai disse que compôs em um período no qual se desentendia muito com a avó. Um dia, ela decidiu fazer uma meditação com uma vela, pedindo para as coisa melhorarem. Na chama da vela, de repente, se formou a imagem de uma pomba branca — qual o próprio Espírito Santo. “Eu comecei a chorar muito. Isso nunca tinha acontecido comigo. Na hora, a letra veio inteira de uma vez. Foi assim…”
"Quando o medo me limitou, eu chorei,
A água limpou, vi a beleza, ela libertou,
Foi o sinal que manifestou, mistérios do amor.
Passo a passo, dia a dia, oro, peço proteção e guia,
Junto os meus cacos de outra batalha,
Coragem, tarda, mas não falha. Eu vôo."
No álbum Além da visão, a Thai canta sobre o amor — como fica claríssimo no mantra Humano emana. Mas, apesar disso, grande parte das músicas foram compostas em momentos de tristeza. É pela música que ela consegue transmutar esse sentimento. E transmuta tão bem que a gente jamais suspeitaria que um trabalho tão doce veio de uma semente tão amarga.
Uma das coisas amargas que a Thai se permitiu sentir foi seu desconforto com o gênero feminino. Hoje, consegue lidar melhor com a dureza e a glória disso, mas prefere não deixar nada fixo. Foi desse questionamento que nasceu a música que dá título ao álbum, Além da visão.
Antes, o refrão dizia: "Pacha Mama é uma mulher, Pacha Mama é uma mulher". Mas, com o tempo, percebi que não queria afirmar algo tão definitivo. Quem sou eu para dizer o que Pacha Mama é ou deixa de ser?
A fluidez não diz respeito só ao gênero.
Também não tem nada fixo na minha sonoridade. Uma hora você pode me ver numa roda de freestyle, e, de repente, estou em outro lugar, na mata, sei lá. Isso torna difícil definir o que eu sou, sabe? Sempre me perguntam: ‘O que você toca?’ E eu respondo: ‘Música autoral’. Mas aí vem outra pergunta: ‘Qual estilo?’. E essa necessidade de encaixar tudo em um rótulo complica até na hora de divulgar meu trabalho. MPB? Não sei. Eu só faço música.
Ouvindo isso, eu me lembrei de um trecho do livro Banzeiro òkòtó, no qual a jornalista Eliane Brum escreve sobre a escolha política de se mudar para Altamira, na Amazônia. O trecho reflete tanto a fluidez presente na música Além da visão quanto a ideia de caminho e mudança constante que aparece na música Processo.
“Escolhi a travessia como modo de vida, no sentido do atravessamento de mundos. Não para me mover de um lugar a outro, mas como escolha por nunca parar de atravessar. Seguir atravessando é aceitar que não há conclusão a que chegar nem entendimento acabado sobre qualquer coisa. Não há um onde”, escreveu a Eliane.
“E, mais difícil, nem há amparo de uma língua, nem de uma linguagem. Penso que essa é uma condição de todes, embora muites não percebam. Só há como ser sendo translíngue — e translinguagem. Língua e linguagem são corpos, quando não o próprio corpo. Do mesmo modo que estamos sempre em constante renovação das células e adaptação das conexões neurais, o que chamamos de ‘eu’ é movimento, mutação, transmutação.”
“Do mesmo modo que estamos sempre em constante renovação das células e adaptação das conexões neurais, o que chamamos de ‘eu’ é movimento, mutação, transmutação”, Eliane Brum.
Foi tentando seguir esse movimento cósmico, o fluxo das coisas, que muitos elementos chegaram ao álbum, como a participação de Konatí na música Além da visão. A Thai contou que chegou a gravar uma base maior com um “espaço” no meio, porque queria encaixar ali uma poesia, algo falado.
Ela pensou na sua amiga, jovem parteira tradicional do povo Mapuche, do Chile, que vive em Paraty. A Konatí já era ligada em música e a Thai sabia que poderia sair algo meio mágico da parceria.
O resultado é uma cumbia xamânica que traz versos em homenagem a esses intrigantes seres que dão à luz a outros seres. Em um momento, são filhas; no outro, mães ou avós. Às vezes, tudo ao mesmo tempo, mostrando que estão sempre em movimento.
Capítulo 3
Os amigos Txale e Fenekyá Fulni-ô , guerreiros da etnia Fulni-ô, de Perbambuco, também chegaram no disco através do fluxo cósmico das coisas. Depois de conhecer Txale em uma viagem, de se tornar amiga dos dois e de visitar a aldeia algumas vezes, a Thai os convidou para cantar em Ser afim, um som ziguezaguante, com pegada forte, letras rápidas e que faz referência às batidas do maracatu.
O Txale e o Fenekyá não são pajés, não são lideranças, eles são guerreiros do povo Fulni-ô. Foi isso que eles explicaram no ritual com jurema e ayahuasca que fizeram dois dias depois do show, no qual a Thai apresentou o álbum, em Ubatuba. Eles são responsáveis por levar a cultura dos Fulni-ô para longe da aldeia. O conhecimento das plantas professoras é uma forma de fazer isso, mas é através da música que eles voam.
Na noite de lua cheia em que aconteceu o ritual — a primeira vez que tomei jurema — uma das primeiras coisas que vi ao olhar para o centro da roda foi um vaga-lume entrando na fogueira. Eu não sei por que um inseto se atiraria com tanto gosto para a morte, mas eu juro que vi: o vaga-lume entrou na fogueira e virou faísca. Fiquei com essa imagem bonita na cabeça, o encontro de duas luzes. Ambas vivas.
No final da cerimônia, depois de tocar e cantar por mais de seis horas, o Fenekyá ainda encontrou disposição para fazer um encerramento bonito, no qual concluiu dizendo que: “A luz reinou”. E eu não pude deixar de lembrar do vaga-lume suicida. Ele não virou faísca em vão, mas para lembrar que a luz sempre reina.
O que eu levei comigo daquele ritual — em que a Thai tocou, dessa vez como convidada — foi um amor tão grande que eu não tinha nem onde guardar. Talvez o mesmo amor que emana de todo o disco da Thai. Afinal, como já falei, Além da visão é, acima de tudo, um trabalho sobre o amor.
Não só o amor como sentimento, mas o amor como um lugar no espaço e no tempo. O destino para onde a nave que sobrevoa o disco nos leva: o amor como um lugar que também é um momento. Daqueles que, mesmo depois de terem passado, continuam existindo. Sempre.
Em Mais brilhante que o sol, o Kodwo Eshun fala sobre a "Música Alienígena": “É uma recombinadora sintética, uma tecnologia de arte aplicada para amplificar as taxas de se tornar alienígena”. É uma música que vai além do que conhecemos como humano. Em vez de refletir nossa cultura ou identidade, ela cria novas realidades sonoras, distantes das convenções. Essa música não se importa com o terreno; ela é cósmica. Assim também é a música da Thai. Ela própria uma nave, que nos leva em direção a um amor que não cabe só nesse planeta.
O fim.
Posfácio
Para escrever este texto, eu busquei inspiração em uma jóia rara do jornalismo musical brasileiro (pelo menos pra mim), que é um perfil muito louco sobre os Autoramas, escrito pelo Mateus Potumati, para a Rolling Stone, em 2008: Autoramas, a banda que nunca existiu.
Saiu no ano em que eu entrei na faculdade. Relendo, me lembrei que eu sempre quis escrever sobre música profissionalmente. Esse foi um dos motivos que me levou a cursar jornalismo.
A ironia da vida é que eu nunca trabalhei em um veículo de música. Fuén! Mas não fico nem um pouco triste, porque, sei lá como, dei um jeito de enfiar música em absolutamente todos os lugares em que trabalhei.
Já entrevistei do Emicida ao Brian Wilson, dos Beach Boys. Mas nada me deixa mais feliz do que escrever sobre a música feita por amigos. A PunkYoga nasceu — há quase seis anos (!) — bastante dessa vontade.
Foi por isso também que quando a Thai lançou o álbum de músicas e o álbum visual eu sabia que tinha que escrever alguma coisa sobre eles. Ubatuba é uma terra pobre em prefeitos honestos, mas muito rica em artistas brilhantes e, apesar de não conseguir registrar tudo, fico satisfeito em fazer um pequeno recorte e apresentar aqui, do meu jeito.
Obrigado por me acompanhar nesse sonho musical.
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Volto com novidades daqui a quinze dias.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor & anarquia,
Nathan