PunkYoga #61: Zé Ramalho Overdrive
Um conto macabro de ficção científica, com Zé Ramalho, biohacking, meditação e alienígenas, porque sim
Antes de começar a ler, uma breve explicação.
Eu escrevi esse conto inspirado na minha amiga Mari Vicente. Um dia, ela disse que queria instalar um microchip no braço para se conectar com a Alexa e programar ela pra tocar Nirvana ou qualquer outra música quando chegasse em casa. Na verdade, não lembro bem se ela disse que faria isso mesmo, ou se viu alguém dizendo que faria. Mas com certeza ela faria, porque tem muito a cara dela.
Eu tava às voltas com contos de terror, e tava morrendo de vontade de escrever alguma coisa do tipo.
Então, pensei: E se a pessoa que instala o chip morre, mas a Alexa toca a música dela, um dia, do nada?
Na mesma época, vi a chamada de uma editora convocando contos para uma coletânea de horror, e usei isso como incentivo para escrever.
Os leitores mais atentos talvez percebam que os temas que eu trato nessa história (Zé Ramalho, biohacking, meditação e alienígenas) não soam estranhos a essa newsletter. Espero que você goste — e sinta medo.
Os primeiros acordes da versão acústica de Avôhai são um buraco de minhoca. Eles te sequestram e te levam para outro lugar do espaço e do tempo. Pena que eu só descobri isso depois que perdi meu marido e todos os membros do meu corpo.
Desde que meu pai comprou a Antologia Acústica do Zé Ramalho, quando eu era criança, Avôhai me acompanha. O sitar dela é o que me acordava todo domingo, antes do meu pai arrombar a porta do quarto sem cerimônia, dizendo que era hora de lavar o carro. Não sei se era consciente, mas, com a mansidão daquele som meio indiano, meio paraibano, ele conseguia amenizar a truculência do despertar.
Foi por causa disso que o meu marido Vicente resolveu escolher Avôhai para tocar toda vez que ele chegasse em casa. Foi uma surpresa incômoda — e, hoje percebo, um pouco psicótica — que ele decidiu fazer depois de instalar um microchip subcutâneo capaz de se conectar direto com o Dercy, o assistente virtual de casa, que a gente comprou em uma promoção da Black Friday. Confesso que não sei qual é o intuito de rasgar o braço para colocar um circuito integrado de silício por dentro da pele, mas, depois de ver o Vicente se vestir de HAL 9000 no carnaval e de imprimir nosso sofá em uma impressora 3D caseira, eu achei mesmo que o próximo passo seria ele virar um ciborgue. Considerando a bagunça de cabos, fios e objetos inúteis que ele guardava naquela maldita garagem, até que demorou para começar a fazer experimentos no próprio corpo. A questão é que depois que me sentei sem querer em cima de um equipamento de cultura de células que estava jogado em uma maca velha, ele simplesmente fechou a garagem e nunca mais me deixou entrar lá. Quando perguntava sobre o que ele estava fazendo, ele desviava o assunto.
Um dia, em casa, trabalhando no meu escritório, me divertindo com petições entediantes e processos trabalhistas insossos, ouvi o sitar de Avôhai. Imaginei que tivesse algum aparelho ligado na sala. Fui até lá e, dois segundos depois, o Vicente abriu a porta.
— Gostou da surpresa? — Ele me perguntou. Mas eu não tinha ideia do que estava falando. — Não reparou que tocou Zé Ramalho quando eu cheguei? Eu consegui conectar um microchip que instalei no braço direto com o Dercy. Agora, toda vez que eu chegar em casa, você vai ouvir esse sitar.
— Nossa, adorei! — Eu disse, tentando não indicar pela minha expressão facial que ele tinha acabado de transformar a música que eu mais gosto de ouvir em um jingle comercial no qual o produto era ele.
***
Numa quinta-feira de tarde, Avôhai começou a tocar. Fechei o computador, porque sabia que não conseguiria mais me concentrar. O Vicente cruzou a soleira esbaforido com um livro na mão.
— Mariano, achei isso aqui no sebo e você não vai acreditar... Sabia que o Zé Ramalho compôs Avôhai depois de uma viagem de cogumelo?
É claro que eu sabia da Amanita matutina.
Sem esperar pela minha resposta, ele explicou que, na década de 1970, o Zé teve uma experiência intensa com cogumelos que ele havia colhido no pasto. Depois de comer alguns, as cores ficaram mais vibrantes, as coisas pareciam ter mais vida e todo o seu entorno ganhou olhos. Foi aí que ele se virou para o céu e viu uma enorme nave mãe pairando sobre suas ideias. Em vez de som de motores ou um sonido cósmico, ele só ouviu: “Avôhai! Avôhai!”. Dias depois, ele escreveu a letra em uma sentada só, como nunca havia acontecido.
— E se a gente invocasse esses ETs? — Me perguntou o Vicente, com um par de olhos tão profundos que chegava a me amargar.
A menos que ele tivesse uma linha telefônica direto com o núcleo central da galáxia escondida na garagem, eu não tinha ideia de como ele pretendia “invocar” alienígenas.
— Ué, através da mente — ele murmurou, cutucando o indicador contra a minha testa. — Já pensou que os ETs podem não ser “seres” extraterrestres, mas “consciências” extraterrestres, que estão em outras dimensões, para além do tempo e do espaço?
— Não, eu nunca pensei nisso, porque eu nem sei do que você está falando — eu disse, meio preocupado. — E eu acho que a gente não consegue imaginar coisas que não conhecemos.
— O que eu quero dizer é… — ele ligou o modo palestrinha que eu apreciava tanto. — O Zé Ramalho disse que se conectou com os ETs rebuscando a consciência, durante uma experiência com cogumelos. A consciência é a única coisa capaz de atravessar dimensões. Não existe limite para os nossos pensamentos. Mariano, eu acho que a gente também pode se conectar. A única coisa é que, como a gente não tem pasto, nem cogumelo, vamos ter que fazer isso com meditação.
O Vicente reparou minha sobrancelha franzida e garantiu:
— Eu aprendi umas técnicas diferentes das que você faz, fica tranquilo que vai ser bem simples.
***
Em uma noite chuvosa de sexta-feira, Vicente e eu nos acomodamos no chão da sala para começar a meditação. Nos últimos tempos, todo segundo que ele tinha livre era dedicado às bugigangas na garagem. Além disso, nossas conversas eram cheias de silêncios desconfortáveis e olhares evasivos. Não sei se ele é quem estava estranho, ou se era eu. Por isso, por mais que eu não acreditasse que esse contato alienígena fosse possível, achei que aquele poderia ser um bom momento para ficarmos juntos. Eu amava o filho da puta. E achava que ele me amava também — até tudo acontecer.
Vicente parece ter pressentido meus sentimentos porque, do nada, falou:
— Mariano, eu sei que eu tenho ficado obcecado com os experimentos, mas nenhum deles é mais importante para mim do que você.
Eu assenti com a cabeça. Passei a duvidar menos da ideia dele. Fui dominado por uma onda de amor. Me lembrei do porquê estávamos juntos há 22 anos. Mas eu não saberia articular. O que a gente viveu só existiu em uma dimensão que nós dois conhecemos, uma dimensão íntima que só nós podemos acessar. Me ocorreu que essas dimensões íntimas, na verdade, se formam com cada um que cruza nosso caminho — mesmo que seja só uma pessoa a quem pedimos 500 gramas de muçarela na seção de frios. Se é assim, devem existir então inúmeras dimensões. Ou quem sabe inúmeros universos? Não sei se seria possível me conectar com outras consciências do cosmos, como disse o Vicente, mas, ao me concentrar, eu sei que consigo me conectar comigo mesmo. E isso deve bastar para me ligar ao resto do universo.
Ali na sala, a única orientação era permanecer sentado, de olhos vendados, e sem se mexer. Não era preciso pensar em nada, só observar o ar entrando e saindo do nariz, enquanto a coluna parecia ser moída pelo cansaço. Nos quarenta primeiros minutos, pensei em coisas como o trabalho e os itens que faltavam no banheiro. Mas, aos poucos, isso tudo foi se dissipando. Depois de um tempo, senti que fui me desprendendo.
Nesse ponto, já não sentia coceiras, nem dor nas costas. Essas sensações só passavam por mim sem aderir, como se eu fosse uma panela de teflon. E, assim, fui entrando mais para dentro de mim.
Entrei nas minhas células, e percebi que, mesmo quando estou parado, elas estão sempre em movimento. Ao prestar atenção nas coisas que aconteciam no meu corpo, alheias à minha vontade, percebi que tudo ao meu redor desmoronava. Já não existia tempo, já não existia espaço.
Assim como não sabemos onde começa e onde termina uma onda no mar, eu também não sabia onde eu começava ou terminava. Eu e o Universo éramos uma coisa só.
Uma ideia emergiu na minha cabeça, ao mesmo tempo em que eu me misturava com tudo que existe, existiu e existirá: será que é assim que se sentem os loucos?
Essa ideia me fez tremer. Senti medo de não voltar à minha condição cotidiana. O medo foi crescendo.
Enquanto me misturava com esse pensamento, uma figura distorcida de dois metros de altura, magra e sem rosto, se materializou na minha frente. Seus braços esguios de serpentes me envolviam em um abraço gelado. Quando chegou com a cabeça perto do meu ouvido, ecoando como a voz de quem grita por socorro dentro de uma caverna sem saída, a figura me disse: “Eu sou a loucura. Você nunca mais vai se livrar de mim”.
Na minha cabeça, esse abraço durou horas, mas podem ter sido segundos. A imagem só desapareceu da minha mente, quando fui capturado por um cheiro estranho de álcool. Voltei para a realidade como se tivesse sido laçado pelos pés. Abri os olhos, com um susto, e a sala estava vazia. Não havia ETs do Zé Ramalho. Nem o Vicente.
Ele havia desaparecido. Eu estava sozinho.
***
Já fazia uma semana desde o sumiço do Vicente. O único membro da família dele que poderia se importar era um tio, que já tinha mais de 90 anos e vivia em uma casa de repouso. Mas eu não queria ser responsável por um infarto.
Já a polícia, quando chegou em casa, parecia mais interessada em me constranger do que ajudar.
— Então, vocês são um casal? — Perguntou ele.
— Sim — respondi.
— Você tem certeza de que vocês não estavam usando drogas?
— Nós estávamos meditando — expliquei.
— Sei. E tinham outros homens aqui “meditando” com vocês?
Ninguém podia me ajudar.
Eu chorava não porque estivesse triste, ou sozinho, mas porque, mais uma vez, eu era abandonado por alguém que eu amava, como meu pai fez depois da doença. Foram longos três anos cuidando dele. Dando comida na boca. Pagando as contas. Limpando a bunda. Nada que ele nunca tenha feito por mim, eu sei. Por isso digo que eu virei o pai do meu pai. Uma ironia masoquista do Tempo. E, um dia, mesmo com tanto cuidado, meu pai partiu, me deixando sozinho no mundo. Era um domingo. O primeiro domingo em que eu não escutei Avôhai.
Desde que o Vicente sumiu, os dias pareciam com esse domingo.
Uma vez, deitado no sofá, com as luzes apagadas, esmagado pelo peso da gravidade, e com o olhar estático voltado para o teto, a cabeça tentava entender por onde minha mente tinha viajado naquele dia, e onde estaria o Vicente. Se os ETs do Zé Ramalho existiam, essa era uma boa hora para aparecerem. Por favor, apareçam, eu rogava. Alguém me dê uma resposta.
Eles não apareceram.
Os dias continuavam se arrastando, e eu continuava sem nenhum sinal do Vicente. Já nem sabia se era dia de jogar o lixo ou não, por isso a sujeira ia se acumulando pela casa. De repente, onde só havia matéria orgânica em decomposição, passou a existir larvas, os únicos seres vivos que me faziam companhia. De onde elas surgiam? Como brotavam ali? Eu não tinha a menor ideia.
Não era a única coisa sem explicação da casa. Por mais de uma vez, ouvi barulhos na garagem. Achava que podia ser o Vicente retornando. Mas quando eu corria para lá, nunca tinha ninguém.
***
O som da chuva batendo na janela era a única coisa que quebrava o silêncio daquela noite. Deitado no sofá, eu observava uma das larvas, a mais agitada, subindo pela minha perna, quando me dei conta de um zumbido, que se instaurava como uma presença.
Tentei me levantar, mas, pela primeira vez na vida, senti a angústia se manifestando como um buraco negro crescendo no meu peito. Nessa hora, a luz azul do Dercy começou a piscar.
Avôhai tocou.
Uma voz sussurrante ecoava na minha mente, se misturando com a do Zé Ramalho. Mas eu não conseguia entender o que ela dizia.
Uma onda de pânico começou a me afogar, só consegui fincar meus dedos no sofá o mais profundo possível. Fechei os olhos, tentando bloquear aquela sensação ruim de tentar respirar embaixo d’água, mas, mesmo assim, percebia algo se movendo no escuro ao meu redor.
— Vicente? — Eu perguntei, abrindo os olhos, mas vendo apenas o breu.
No anoitecer seguinte, sentado na mesma posição, como se as noites fossem gêmeas, Avôhai tocou de novo. E, mais uma vez, só vi o escuro me contemplando. Uma cena que se repetiu com frequência no passar dos dias. Toda noite, sozinho, no escuro, Avôhai tocava.
Finalmente, uma vez, quando a música soou anunciando a chegada de ninguém, eu consegui ver o que se movia ao meu redor. Uma figura distorcida começou a emergir das sombras, ela se contorcia e se transformava diante dos meus olhos. Apesar de ser uma figura humana, seus braços se mexiam de forma sinuosa, como se não tivessem ossos, nem sentido. Era a loucura com seus braços de serpente que se estendiam em direção à minha sanidade. Você nunca mais vai se livrar de mim.
***
Eu já não saía de casa. Não conseguia. Me alimentava só com o resto de Cremogema que havia sobrado da última compra. Devo ter perdido uns 20 quilos. Passei a dormir todos os dias no sofá da sala, porque não tinha mais forças para subir as escadas. Olhava no espelho e via a miséria.
Me surpreendi por conseguir ter força para levantar a cabeça naquela última vez que ouvi Avôhai. A música tocou na sala. Mas naquela noite ela também me tocou. Pela primeira vez, eu consegui entrar no som.
Os primeiros acordes da versão acústica de Avôhai são um buraco de minhoca. Eles te sequestram e te levam para outro lugar do espaço e do tempo. Senti minha mente se desprender do meu corpo, como uma mão que sai de uma luva folgada.
Então, ali, me olhando com os olhos vidrados de um psicopata, eu vi o Vicente.
— Finalmente, você acordou, nem acredito! — Disse ele. — Nem tenta se levantar, você não vai conseguir.
Nós estávamos na garagem. Eu estava deitado em cima da maca velha. Tentei me ajeitar, mas senti falta de algo. Quando minhas mãos fantasmas buscaram o apoio que sempre estivera ali, não encontrei nada. Um calafrio percorreu minha espinha quando percebi que minhas pernas também não estavam onde deveriam estar.
— O que você fez? — Eu perguntei, em meio ao choque de perceber meu corpo inteiro decepado.
— Era muito importante que você não fugisse… Desculpa, meu amor, mas eu sabia que você não ia concordar com isso.
— Com isso o quê, peloamordedeus!?
— Mariano, aquela noite em que a gente meditou na sala, eu percebi que você entrou em transe. Eu juro que tentei entrar também, eu queria muito, mas minha cabeça não deixava. — Lamentou o babaca. — Eu precisei borrifar éter no ar, achei que assim você perderia a consciência e o transe poderia durar mais. E deu certo, não é? Quer dizer, esse tempo todo você estava em contato com os ETs do Zé Ramalho, não estava?
Eu me recusava a acreditar que isso tinha acontecido. Era só uma ideia deliróide. Não seria possível. Comecei a me debater na maca coberta de sangue para ver se alguma coisa me machucava, para ver se alguma coisa era real. Me debati tanto que escorreguei, e caí no chão.
— Assim você vai quebrar todos os meus equipamentos. — Essa era a preocupação do Vicente. — Se você não parar de se mexer assim, eu vou ter que te colocar lá fora.
Sem interesse no que ele tinha a dizer, continuei me debatendo nas poças vermelhas que se formavam no meu entorno. Cumprindo com sua promessa, ele me pegou, me arrastou pela casa e me colocou na laje fria onde a gente costumava quarar nossas camisas.
— Eu queria muito que você lembrasse do que aconteceu esse tempo todo, que me contasse como foi o contato. Espero que aqui fora você recupere a memória… — Disse ele, indo embora e me deixando, mais uma vez, no escuro.
Enquanto eu lutava para entender tudo aquilo em meio à penumbra, uma estrela solitária brilhava no céu noturno, me observando com sua luz distante, como se iluminasse meus horrores. Eu não conseguia decidir qual realidade era a pior — a que eu definhava sem saber do Vicente, ou a que ele surgia para roubar não apenas os meus membros, mas toda a esperança que um dia eu já tive.
Ao meu lado, uma luz azul começou a piscar. Era o Dercy, que o Vicente tinha insistido em instalar naquela área. Foi fácil acessá-lo por voz. Mas gravar essa mensagem foi mais difícil. As coisas não parecem estar em ordem cronológica na minha cabeça.
Se você estiver ouvindo isso, por favor, me ajude. O Vicente pode aparecer a qualquer momento.
O Fim.
Posfácio
Acabou, gente, não tem mais o que ler aqui...
Ok, se, mesmo depois de ler 15 mil caracteres, você ainda quer ler mais coisa, então eu vou contar um segredo.
Eu disse lá em cima que comecei a escrever porque queria mandar o conto para uma antologia de terror. Pois bem, não mandei. Fuén!
Quando fui reler as regras, no último dia pra fazer o envio, vi que o limite era de duas páginas de word. Esse conto tem seis. Risos. Não vai entrar em nenhuma antologia, mas tá aí.
Tô feliz, porque terminar um conto é sempre uma luta interna muito grande. Todos os impostores do meu cérebro parecem ser acionados. Mas, desta vez, eles não venceram.
Obrigado, Mari, pela inspiração. E obrigado a você que chegou até aqui, espero ter honrado seu tempo.
Daqui a quinze dias eu volto com a Microdose.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan
Só hoje consegui ler isso... muito irado!
Tô numa onda de contos de terror/fantasia; e curti demais esse seu, Nathan!
Valeu!
Sensacional! Eu amei a atmosfera de mistério e terror que você conseguiu criar nessas páginas! Espero que surja uma outra antologia na qual possa se inscrever, seria muito legal ver este conto publicado no papel :)