PunkYoga #58: Mortífero nirvana, vol. I
Vipassana: o que aprendi em dez dias de meditação & silêncio & compaixão & desespero.
Prefácio
Eu tava com a mente maluca depois de oito dias sem poder falar com ninguém, sem mexer no celular, sem ler, sem escrever e sem receber nenhuma notícia sobre o fim do namoro da Luisa Sonza. Depois de meditar por seis horas, com pequenas pausas, meu corpo doía como se tivesse passado por um ultraprocessador. E ainda faltavam mais quatro horas de meditação pra terminar aquele dia. Foi nesse estado, irritado e reclamão em posição de lótus, que eu lembrei do meu avô.
Como eu podia estar reclamando de qualquer coisa desse tipo se meu avô passou os últimos três anos da vida dele sem poder se mexer, nem falar, por causa de um avc?
Diferente de mim, naquela situação, ele não tinha nenhum recurso que o ajudasse a lidar com aquilo. Me bateu uma tristeza astronômica imaginar que ele foi embora numa situação tão ruim.
Nesse momento, eu já tava em estado meditativo. Enquanto minha mente se mantinha atenta a cada sensação do meu corpo, senti que quebrava a linearidade do tempo através da consciência, fundi o passado e o presente e viajei. Pude ver o meu avô de novo, pude conversar com ele, pude sentir ele. E eu chorei. Não porque eu tivesse triste, mas porque eu percebi que, ao me instruir, ao buscar técnicas pra lidar comigo mesmo, eu também tava ajudando o meu avô.
Se, geneticamente, eu sou constituído por partes que foram dele, então, no fundo, nós somos a mesma coisa.
Isso tudo me veio à mente no oitavo dia do retiro vipassana, um curso de dez dias de meditação e silêncio — sim, dez dias de meditação e silêncio — que eu decidi fazer no meu aniversário de 35 anos.
Capítulo 1: Faça a coisa certa
Nos três primeiros dias, nossa única tarefa era sentar numa almofada, dentro de um salão enorme, onde tinham umas cem pessoas em lugares marcados no chão, e prestar atenção no ar que entrava e saía do nariz. Parece simples, né, mas você precisa fazer isso das 4 e meia da manhã até às 9 da noite, com breves pausas pra tomar café, almoço e lanchinho da tarde (uma fruta), sem janta. Tenta.
A orientação é simples: “Não faça nada”. Nas palestras da noite, uma fita gravada com os ensinamentos do professor Goenka avisa:
Não tente controlar a respiração, ou respirar de uma maneira específica. Basta estar atento à realidade do momento presente, seja ele qual for. Quando a respiração entra, você está apenas consciente – agora a respiração está entrando. Quando a respiração sai, você está apenas consciente – agora a respiração está saindo. E quando você perde o foco e sua mente começa a vagar em memórias e fantasias, você simplesmente sabe: agora minha mente se afastou da respiração.
O historiador Yuval Harari, autor de “Sapiens” e praticante da técnica, disse que essas palavras acima foram a coisa mais importante que alguém já disse pra ele.
E foi nesse ambiente completamente calmo e tranquilo que eu surtei. Internamente, claro, porque sou do elegante signo de libra.
Nos três primeiros dias eu só sentia raiva. Na verdade, eu tava quase entrando em erupção. Muito puto! Tão puto que pensei “pô, não é legal estar num lugar desse sentindo tanta raiva”. Mas eu tava pra caralho. Absolutamente tudo me irritava.
Como ninguém podia conversar com ninguém, nem mesmo nos alojamentos, qualquer barulho virava um trovão nos meus ouvidos. Isso me fazia perder o foco, a paciência e por pouco o réu primário.
A gente podia fazer algumas das sessões de meditação no quarto, que eu dividia com outra pessoa, mas o problema é que lá eu ouvia os caras andando com seus passos de mamute bêbado nos corredores, e isso me desconcentrava. Eles também batiam as portas com tanta força que às vezes parecia que tava rolando um ensaio do Olodum.
Não, sério, como uma pessoa vai pra um lugar de silêncio e meditação e consegue ser tão sem noção?
No salão principal, eu saía do sério com as pessoas que se mexiam demais. Tinha hora que eu até conseguia me concentrar, e tava lá quase flutuando, quase alcançando o nirvana e os caras me laçavam de volta pelo pé. Um deles passou os dez dias fungando do meu lado. E, tipo, ok a pessoa estar doente e tal, mas, porra!, DEZ DIAS FUNGANDO NA MINHA ORELHA, PARCEIRO? Eu tava quase fugindo do retiro só pra comprar um Sorini e fazer ele aborver soro pelo cu. Que ódio! Que ódio! Que ódio!
Que ódio?
Na real, eu não tava ali pra passar raiva…
No terceiro dia, o incômodo e a irritação eram tantos que eu decidi pedir uma ajuda profissional. No horário do almoço, fui perguntar pro professor se tudo aquilo que eu tava sentindo era normal.
Ele disse que sim, foi um fofo, lembrou que sentimentos são naturais e que tá tudo bem a gente sentir seja lá o que for. O que não dá é pra deixar ser consumido pelos sentimentos. Nem os bons, nem os ruins.
Eu ainda não sabia, mas isso, na verdade, era a lição mais básica de toda aquela experiência: nenhuma sensação, por mais legal ou mais horrível que seja, vai durar para sempre. Tudo passa.
Isso é anicca (“anit-txá”, como eles pronunciavam lá), que quer dizer impermanência.
O professor me pediu pra observar a raiva de fora, como um espectador. Sem me envolver com ela. Como se fosse um voyer atento em sua cadeira de couro. Sem tornar ela parte de mim. E assim ela se dissolveria de forma tão rápida e tão intensa quanto surgiu.
Foi o que eu fiz. E, de fato, ajudou.
Mas depois percebi que, na verdade, aquela raiva toda tava escondendo um outro sentimento muito mais mortífero, e que também era o que eu mais temia que aparecesse: a ansiedade.
Capítulo 2: Nadologia
Vipassana é uma técnica de meditação. Eu sabia disso antes de pisar lá. O que eu não sabia é que vipassana é uma técnica de meditação redescoberta pelo próprio Sidarta Gautama, o Buda, há mais de 2500 anos, na Índia.
No curso, em uma das palestras norturnas, a gravação do profesor Goenka explica que, apesar dos ensinamentos do Buda sobre desapego e libertação do sofrimento terem permanecido vivos nos livros, a interpretação desses ensinamentos é difícil sem a prática. Ou seja, não basta ler, pra aprender tem que viver a experiência.
Pra ilustrar essa ideia, o Goenka conta a história de um jovem professor inteligente que embarca em uma viagem de navio com um marinheiro mais velho e analfabeto.
Um dia, o professor pergunta ao marinheiro se ele tem conhecimento em geologia. Ao perceber que não, o professor diz que o marinheiro desperdiçou um quarto de sua vida por não ter estudado essa disciplina. Nos dias seguintes, o professor continua indagando sobre oceanografia e meteorologia, e, ao receber respostas negativas, ele diz que o velho desperdiçou mais e mais da sua vida. No fim, o marinheiro é quem se volta para o professor e pergunta se ele estudou "nadologia", coisa que o professor admite não saber o que é. O marinheiro explica então que é arte de “saber nadar”. Porque o barco tá afundando e só quem conseguir nadar até a ilha mais próxima vai sobreviver. Depois que o professor avisa que não sabe nadar, o marinheiro conclui: "Professor, o senhor desperdiçou toda a sua vida."
O que o vipassana oferece são dez dias de prática. É um treinamento intensivo que ultrapassa os ensinamentos dos livros, e ensina a nadar até à ilha mais próxima. A ideia é que, assim como Buda, você mesmo observe os efeitos da meditação no corpo, na mente e na vida. Sem intermediações, sem discurso religioso. Afinal, se aquilo que a gente pensa ajuda a definir aquilo que a gente é, e se transtornos como depressão e ansiedade são ruminações da mente sobre o passado e o futuro, então ter o mínimo de controle sobre a qualidade dos seus pensamentos é essencial para sobreviver a um mundo em colapso.
O Goenka também explicou que essa técnica se perdeu na Indía, mas foi guardada por muitas gerações de meditadores de Myanmar (antiga Birmânia). Então, o que a gente aprende hoje é esse conhecimento que foi preservado, e é repassado por professores como o Goenka.
No livro “Meditação Vipassana: A arte de viver segundo S.N. Goenka”, o autor William Hart escreve:
Se existe uma técnica mantida por incontáveis gerações, que oferece exatamente os resultados descritos por Buda e segue, com precisão, suas instruções e elucida pontos há tempos obscuros, então essa técnica é, sem dúvida, digna de ser investigada. Vipassana é esse método. É uma técnica extraordinária na sua simplicidade, na sua ausência total de dogmas e, acima de tudo, nos resultados que oferece.
No começo, eu não sabia muito bem quais seriam esses resultados. O que eu senti, ao parar pra observar o ar entrando e saindo do meu nariz por três dias consecutivos, foi que existem reações acontecendo no corpo a todo momento. Como ensinaram lá, não envelhecemos do dia pra noite, estamos em constante processo de transformação. Tudo muda o tempo todo. Tudo é impermanente.
Tudo é anicca.
Assim como cientistas com seus microscópios, Buda descobriu, através da observação da mente, que o nosso corpo é formado por “unidades indivisíveis”, os átomos. E, de fato, o que eu senti quando comecei a observar as sensações mais sutis do corpo foi como se eu estivesse entrando dentro das minhas células, nadando em uma piscina de elétrons, observando todas essas transformações acontecendo ao meu redor.
Como escreveu o Hart, “a verdade que Buda descobriu resultou não de uma intelectualização, mas da sua experiência direta, e, por essa razão, foi capaz de libertá-lo”.
Mas, naqueles três primeiros dias, quem não tava liberto era eu. Dentro da cabeça, os sentimentos oscilavam entre o êxtase divino de estar vivendo uma experiência transcedental e a angústia avassaladora de querer saber quanto tempo faltava pra sair logo daquele inferno, sempre em posição de lótus — mas às vezes escorado na parede, ou tentando esticar as pernas.
No quarto dia, eles avisaram que aquele começo tinha sido apenas uma preparação pro ensinamento da técnia do vipassana em si. Aquilo tudo era só um preview. Nos próximos sete dias eu viveria a melhor e a pior experiência da minha vida.
Continua aqui…
Posfácio
Abri a caixa de e-mail e me deparei com notificações de várias pessoas novas que chegaram aqui através da indicação da newsletter da Vanessa Guedes, a Segredos em Órbita. Que beleza! Boas vindas, pessoal!
Acho que cabe aqui uma breve apresentação pra não acharem que sou mal educado…
Meu nome é Nathan Fernandes, sou jornalista, já trabalhei na Playboy e na Galileu. Hoje, sou freelancer e publico em lugares como Folha de SP., Veja e GQ, e sou editor do portal Ciência Psicodélica. Cubro direitos humanos e políticas de drogas, além de questões LGBTQIAPN+, tecnologia e comportamento. Também faço parte do Icaro, um grupo de pesquisas psicodélicas da Unicamp, e tenho me especializado cada vez mais nesse tema. Sou apaixonado por música, cinema, e coisas estranhas na área da ciência. A PunkYoga é uma tentativa de juntar tudo isso, é um balaio anarco-queer-decolonial.
Se quiser saber mais sobre esses temas e ver umas fotos bonitas de Ubatuba, onde moro, me segue lá no instagram @nathanef e @punkyoga_.
Por fim, queria agradecer à Vanessa pela generosidade da indicação. A newsletter dela é uma das que mais me fazem parar no tempo e apreciar o momento e a beleza da vida. A escrita dela é inspiradora. Foi uma honra sair na Segredos em Órbita.
Se você chegou até aqui, meu mais sincero obrigado.
Eu costumo publicar a PunkYoga a cada 15 dias, alternando uma edição de ensaio (como essa) e outra de indicações (a Microdose de PunkYoga). Excepcionalmente, vou publicar na sexta que vem a segunda parte do ensaio sobre o vipassana. Te vejo lá.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor & anarquia,
Nathan
eu tive a chance de fazer o retiro de vipassana esse ano, mas achei melhor esperar para o ano que vem, assim eu poderia treinar uns dias em casa antes e ver se eu não ia surtar. hahaha
achei tão lindo topar com teu relato hoje, com calma; talvez eu só tivesse esperando ler esse texto. (e vc já publicou o próximo, vou ler na sequência)
❤️
Que texto maravilhoso!!!
Obrigada por escrever!