PunkYoga #64: Virgens radioativas
Arrepiando os cabelos do cu com o hálito frio da morte no cangote (ou reflexões sobre o fim)
Capítulo 1
Amo meu avô e minha avó, mas tem acontecido uma coisa estranha toda vez que vejo eles. Um sentimento que eu só posso descrever como bagunçado.
Minha avó sempre foi a personificação da Dona Benta pra mim, muito amável e calorosa. Muito católica também. Quando o padre faltava na igreja que fica na rua da casa dela, era ela quem rezava a missa. Quem lê isso pode achar que minha avó é uma daquelas beatas mexeriqueiras de novela, mas, na verdade, acho que a igreja foi o único espaço que ela encontrou pra abrigar o seu espírito punk.
Foi através da luta popular e do Clube de Mães que, nos anos 70 e 80, minha avó e outras mulheres conseguiram levar saneamento básico, postos de saúde e creches para as crianças do Parque Santo Antônio — região ali do Capão Redondo, periferia da zona sul de SP, onde eu nasci e cresci, e onde ela mora até hoje.
Sempre lembro da minha avó falando da vez em que foi a um protesto na Praça da Sé com meu tio pequeno no colo, mesmo com meu avô puto e bêbado dizendo que, se ela fosse, não precisaria mais voltar.
Ela foi. Manifestou segurando um bebê. E voltou pra casa. Fuck the system.
É essa a vó Francisca que eu tenho na cabeça. Mas, agora, cada vez que a vejo ela tá mais velhinha. Já não escuta tão bem, já não tem tanta força. Não tá no auge da forma física.
Sempre que a vejo tenho vontade tanto de abraçá-la e de aproveitar todos os segundos disponíveis ao lado dela, quanto de sair correndo pra não ter que testemunhar a mulher que barbarizava a Praça da Sé se esvaindo aos poucos. É estranho.
No mesmo dia em que a visitei, em uma breve turnê por SP, também consegui visitar meu vô Edson, pai da minha mãe, que é advogado aposentado. Dias antes da minha visita, ele tava transportando um pavão, uma cabra e uma caixa de abelhas em uma caminhonete. Parece o início de uma piada ruim, mas é meu avô tentando dar vida a um pedaço de terra que ele tem em Parelheiros.
Ele deveria estar descansando depois de sofrer um enfarto recente, mas ele tá plenamente ativo, cuidando do sítio. A sanha é tanta que ele acabou se descuidando e sendo picado pelas abelhas. Foi parar no hospital todo inchado.
Visitei ele dias depois do ataque. Na ocasião, ele disse que, depois do enfarto, está com cerca de 30% do coração funcionando. E, aos 84 anos, sentado em cima do aparador da sala, com as pernas cruzadas e um ar búdico, ele repetiu sorrindo o que a sua mãe sempre dizia: passou dos 80 anos já tá fazendo hora extra.
Eu fiquei em choque.
Contemplando a possibilidade do fim do meu avô, eu tomava consciência sobre a minha própria morte.
Capítulo 2
Achei a obstinação do meu avô bem parecida com a da Marie Curie, que, mesmo sabendo que o rádio é um elemento perigoso (meio que radioativo!), continuou mexendo naquele troço até deteriorar cada célula do seu corpo.
No livro A ridícula ideia de nunca mais te ver, uma biografia da Marie Curie, a Rosa Monteiro descreve em palavras bonitas o que eu sinto quando vejo meus avós tão velhinhos.
Entramos, saímos, amamos, brigamos, trabalhamos, dormimos; ou seja, passamos a vida contando como aquela criança [brincando de esconde-esconde], entretidos ou aturdidos, sem pensar que a nossa existência tem fim. Mas de vez em quando lembramos que somos mortais e então olhamos para trás, sobressaltados, e lá está a Parca, sorrindo, quietinha, muito comportada, como se não tivesse se mexido, só que mais perto, um pouquinho mais perto de nós. E, assim, toda vez que nos distraímos e cuidamos de outras coisas, a Morte aproveita para dar um salto e se aproximar do pique. Até chegar o momento em que, sem perceber, esgotamos todo o nosso tempo; e sentimos o hálito frio da morte no cangote, e um instante depois, sem ao menos nos dar a chance de olhar de novo para trás, suas garras tocam nossa parede e já somos dela.
Nascimentos, aniversários, casamentos e velórios tem esse poder transcedental de nos fazer lembrar da passagem do tempo, algo que vai nos levar inevitavelmente à morte.
Parece assustador, mas a Rosa Montero lembra que a morte, na verdade, só tem a dimensão que a gente dá a ela. No livro, a escritora lembra que constatar a nossa pequenez, por exemplo, torna a morte tão pequena quanto nós mesmos. “Quando você se liberta da ilusão da própria importância, tudo dá menos medo.”
***
É alentador, mas fico pensando como deve ser pra uma pessoa como a Marie Curie, que descobriu a radioatividade e ganhou dois prêmio Nobel, se sentar na frente de um espelho e pensar: você não é importante.
Em uma escala cósmica, de fato, ninguém é importante. Nem eu, nem você, nem a G Key. Mas acho que a gente se esquece disso, e fica perdidamente encantado pelo brilho do nosso próprio ego, como a Marie Curie ficou, pelo brilho do rádio.
Veja bem, a Marie Curie morreu de anemia aplástica, quase cega, por causa da exposição à radioatividade. Ou seja, ela não morreu carbonizada intantaneamente por um raio laser; ela foi definhando ao longo de décadas.
Quando a Marie e seu marido Pierre descobriram o elemento rádio, em 1898, as pessoas ficaram enfeitiçadas pelo brilho verde que ele emitia. Os cientistas andavam com pedaços do elemento no bolso da camisa só pra se exibir por aí, sem saber que aquilo poderia necrosar o seu peito. No livro, a Rosa Montero lembra que usavam rádio nos ponteiros dos relógios que indicavam as horas no escuro, e ela também suspeita que usassem o elemento nas imagens luminescentes das virgens de Fátima que suas tias traziam do santurário. Tipo geloucos da Cola-Cola. Só que mortíferos. Virgens literalmente radioativas.
Pra se ter uma ideia, em 1956, o genro da Marie Curie mediu o nível de radioatividade dos cadernos da sogra, de 1902, e viu que, mais de 50 anos depois, os papéis continuavam contaminados.
Enfim, eventualmente, as pessoas começaram a perceber que não era prudente usar uma pedra de rádio pendurada no pescoço, e resolveram delegar o elemento mais pras máquinas de radiografia e menos pros bibelôs religiosos. Mas a Marie Curie não.
Em certa altura, no livro, a Rosa Montero fica chocada quando constata que a Marie se recusava a perceber o risco do rádio, mesmo sabendo tanto sobre o tema.
Meu palpite é que, na verdade, ela sabia muito bem dos riscos. E preferiu corrê-los mesmo assim.
Da mesma forma que meu avô sabe que cuidar de cabras, pavões e abelhas com 70% do coração fodido pode não fazer bem pra sua saúde, imagino que a Marie também soubesse que ficar enfurnada em um laboratório com um elemento radioativo não era a coisa mais segura do mundo.
A questão é: como você vai preencher o seu tempo antes de sentir o inevitável hálito frio da morte no cangote? Porque ele vai chegar. E, talvez, pessoas como os meu avô, minha avó e a Marie Curie queiram ter certeza de que não disperdiçaram esse tempo zelando por uma ilusão de segurança e controle.
Capítulo 3
Em abril de 2023, o cientista Roland Griffiths disse que tinha 50% de chance de chegar vivo no Halloween daquele ano.
Ele sabia da proximidade com sua morte porque tinha sido diagnosticado com câncer de cólon. E ele passou o ano de 2023 inteiro dando entrevistas sobre como era a sensação de estar morrendo. A entrevista mais legal foi pro New York Times (NYT).
O curioso da história do Roland é que ele era um psicofarmacologista reconhecido da Universidade Johns Hopkins que começou a se interessar por psicodélicos nos anos 2000. No livro Como mudar sua mente, o Michael Pollan escreve que o artigo que ele lançou em 2006 (sobre experiências místicas com cogumelos) foi:
…em mais de quatro décadas — se não em todos os tempos —, o primeiro estudo clínico duplo-cego concebido de maneira rigorosa, com grupo de controle e uso de placebo, a examinar os efeitos psicológicos dos compostos psicodélicos.
Nos últimos anos, ele tava interessado em saber como essas substâncias poderiam ajudar pessoas com doenças graves que estavam prestes a morrer. Em 2016, ele lançou um artigo sobre como os cogumelos poderiam ajudar a diminuir a ansiedade e a depressão de pessoas que estavam com câncer em estágio avançado.
Pois é. Depois de se dedicar a investigar o uso de psicodélicos por pessoas no fim da vida, ele mesmo se viu nessa posição: tomando LSD, aos 76 anos, depois de receber um diagnóstico duro.
Não é à toa que todo mundo queria saber o que ele tinha a dizer. Nem sempre as pessoas são tão lúcidas e lidam de maneira tão aberta com a proximidade do fim.
Na entrevista do NYT, o Roland disse uma das coisas mais bonitas que alguém já disse em uma entrevista. Quando o repórter perguntou sobre como ele estava lidando com a morte, ele respondeu:
Houve um período em que parecia que eu ia acordar e dizer: "Cara, isso foi" — para colocar em linguagem psicodélica — "uma bad trip". Mas logo depois disso comecei a contemplar os diferentes estados psicológicos que seriam naturalmente decorrentes de um diagnóstico como o meu: depressão, ansiedade, negação, raiva ou adotar algum sistema de crenças religioso, o que, como cientista, eu não estava preparado para fazer. Passei por isso, explorando como seria se eu vivesse essas reações, e rapidamente concluí que essa não era uma maneira sábia de se viver. Tenho uma prática de meditação de longo prazo, e o foco ali está na natureza da mente, da consciência. A pessoa vê que pensamentos e emoções são coisas transitórias. São aparências da mente com as quais você não precisa se identificar.
Pausa pra dizer que isso é exatamente o que a gente aprende no vipassana.
E ele continuou:
Essa prática — e alguma experiência com psicodélicos — foi incrivelmente útil porque o que eu reconheci é que a melhor maneira de lidar com esse diagnóstico era praticar a gratidão pela preciosidade das nossas vidas. Agarrar-se à ideia de cura não foi útil. [Risos.] Na verdade, acabamos de receber o resultado de um exame falando que o câncer está progredindo. Minha esposa, Marla, e eu dizemos um ao outro: "Não importa o que o exame mostre, é perfeito." De fato, mostrou uma coisa que não seria algo para comemorar. Mas é o que é. É real. E o que é mais divertido do que a realidade?
…Sei lá, eu posso listar, pelo menos, 50 coisas mais divertidas do que a realidade em dez segundos. Mas nada disso se sustentaria. A capacidade de prestar atenção ao presente e se encantar com o que você tem à mão naquele momento é um treino mental que parece se mostrar incrivelmente útil nessas horas.
O Roland contou que, depois de receber o diagnóstico, sua vida se tornou “mais maravilhosa do que nunca”, porque ele passou realmente a viver.
E viveu até o dia 16 de outubro de 2023, quinze dias antes do Halloween.
Uma das falas que eu mais guardo dele é a de que as pessoas não deveriam esperar receber um diagnóstico de câncer avançado para começar a aproveitar a vida. Afinal, em maior ou menor medida, todos nós estamos em estágio terminal.
Tento me lembrar disso enquanto contemplo meu avô e minha avó.
Lembro também que, em um Universo de 13 bilhões de anos, tudo está em constante transformação, em uma escala que nós nem temos capacidade de compreender. Logo, se nós — e consequentemente a nossa morte — não temos importância, como diz a Rosa Montero… Se mortes são apenas mais um entre tantos processos de transformação acontecendo a todo instante em um Universo gigantesco, então… A morte não é um fim.
Posfácio
Eu tava no meio da escrita de um conto de terror. E quando eu tô escrevendo conto, eu não posso fazer mais nada, se não não sai. Mas precisei parar tudo que tava fazendo depois de visitar meu avô e minha avó. Eu não estava esperando por isso, mas, depois de ver eles, fui invadido por esses pensamentos de morte.
Pensei: por que ter medo de escrever sobre uma coisa tão comum e inevitável?
Não é confortável pra mim, nem um pouco. Mas, da mesma forma que histórias de horror são uma forma de sentirmos medo em segurança, talvez, escrever sobre a morte seja uma forma dela não te pegar tão de surpresa.
Obrigado por ler todas essas linhas. Se puder, me conta se você pensa sobre a morte.
Como sempre, você pode me responder esse email, comentar nos comentários do Substack ou me achar lá no Insta.
Volto daqui a quinze dias com a edição microdose de PunkYoga.
Vai pela sombra & fica na paz de Bowie.
Com amor & anarquia,
Nathan
Lembrei daquela frase de um autor latino (não lembro o nome) que foi repetida pelo Michel de Montaigne: enquanto eu estou vivo, a morte não está aqui, e quando ela chegar sou eu que não estarei. Portanto, a morte é algo que não me diz respeito. Acho que essa morte na qual a gente pensa de vez em quando ou sempre não é a morte real. No momento em que morremos já não somos mais, então não é possível pensar ou falar de uma coisa se você não tá mais aí pra ver do que se trata. Entenderam? Eu também não. 😁
Atrasada no comentário mas reli esse texto em um momento que ele falou mais comigo. A primeira coisa que me veio foi que, no vipassana, não são só os pensamentos, as sensações e as emoções que são transitórios. Goenka fala da impermanência de todas as coisas. Inclusive a nossa.
E daí tem esse lance de todos os processos de transformação, e o pensamento de que sermos seres finitos não faz o menor sentido nos processos naturais. Caí até na tentação de começar a agendar coisas para a próxima vida, pois essa já está lotada. Mas parei com isso porque, afinal, e a presença?
E é isso. 🙂