PunkYoga #67: Mortífero nirvana, vol. III
Um ano depois do vipassana e a "mais infernal e desavergonhada orgia de drogas detonadoras de cérebros em toda história da humanidade"
Este texto é parte de uma série. Os dois primeiros volumes foram escritos há um ano, e neles eu conto como foi passar dez dias meditando em silêncio. Então, se você quer saber sobre a experiência do vipassana em si, recomendo que leia aqui antes.
Neste texto abaixo, eu falo sobre o que mudou na minha vida depois da experiência, apresento uns conceitos de física teórica, reflito sobre a ideia de tempo e faço umas gracinhas. Então, não tem problema nenhum se você não quiser ler os anteriores, ou se quiser ler fora de ordem, ou mesmo se não quiser ler nada, tá tudo bem, o mundo é um caos.
Capítulo 7: Filme do passado
O presente não existe. Em um trecho do livro O teste do ácido do refresco elétrico, o Tom Wolfe narra essa ideia maluca do Ken Kinsey.
Segundo o Kinsey (o cara que escreveu o livro Um estranho no ninho), todo mundo convive com uma espécie de atraso sensorial dentro de si, que é tipo aquele um segundo que levamos pra perceber a queimadura que fazemos na coxa ao manipular uma frigideira vestindo apenas cueca¹.
“O atraso entre o momento em que os sentidos percebem algo e aquele em que a pessoa está apta a reagir. (…) Estamos todos condenados a passar nossas vidas assistindo a um filme que mostra nossa vida — ficamos o tempo todo representando algo que na verdade acabou de acontecer. E aconteceu no mínimo um trigésimo de segundo atrás. Pensamos que estamos no presente, mas não estamos. O presente que conhecemos não é mais que um filme do passado, e na verdade jamais seremos capazes de controlar o presente com nossos recursos normais.”
É particularmente lamentável ler um negócio desse depois de fazer o vipassana, ou seja, depois de ficar dez dias em silêncio e medição, tendo como único objetivo se ater ao presente — que, no caso, não existe, segundo o Kinsey. Mas aí eu descobri um negócio.
¹ Meu amigo Daniel Motta tinha um projeto chamado Me dê um conselho, cujo conselho mais sábio era “nunca use uma frigideira de cueca.
Capítulo 8: Infernal e desavergonhada
Já faz um ano desde que vivi minha experiência no vipassana. Antes disso, sempre que conversava com pessoas que já haviam passado por isso, a pergunta que eu mais queria fazer era: o que isso mudou na sua vida?
Tá, você fica lá dez dias meditando, mas pra quê?
Antes de tentar responder a essa pergunta eu devo dizer que a gente sai do vipassana com a “tarefa” de manter a meditação de, pelo menos, duas horas por dia (que não precisam ser seguidas).
Falhei miseravelmente.
Meditei menos do que gostaria, é verdade, mas pelo menos consegui manter uma constância. Digo, tem semanas que eu tô superengajado, outras nem tanto. Tem dias que medito meia hora direto, outras não passam de dez minutos. Eu oscilo. Mas nunca abandonei a prática, ela já se infiltrou nas minhas células e na minha rotina.
Antes de compartilhar como isso mudou minha vida, preciso destacar algo importante: eu não fazia ideia do quão ansioso eu era.
Pra ter uma ideia, viagem era uma coisa que sempre me deixava uma pilha de nervos, desde que eu comecei a viajar frequentemente a trabalho. Nunca foi nada paralisante, ou que eu não soubesse lidar — talvez por isso não achei que fosse um problema —, mas eu sempre precisei fazer um esforço hercúleo pra entrar num ciclindro metálico voador e desembarcar em outro ponto do planeta distante demais do meu travesseiro.
Uma vez fui pro Havaí fazer uma matéria. O Havaí, cara!! Levei quase dois dias pra chegar lá, fiz um monte de escala, e passei um único dia inteiro no lugar. Foi o bate volta mais rápido do oeste. No último dia, meu chekout do hotel era ao meio dia, mas meu voo só saía lá pras dez da noite. Eu poderia ter aproveitado uma tarde inteira cantando Somewhere over the rainbow com um ukulele em Honolulu. Mas preferi ficar dez horas no aeroporto rezando pras horas passarem rápido e eu poder chegar em casa logo.
Eu não sabia que isso era ansiedade.
Há um tempinho, eu e o meu amor Felipe fomos usufruir dos nossos privilégios de trabalhadores remotos sem plano de saúde e com renda instável dando um rolê de meses na Argentina. Precisei voltar mais cedo por causa de um trampo. E praticamente implorei pro Felipe me levar até o aeroporto, fazer o check in do voo comigo e me acompanhar até o portão de embarque, até o limite da área permitida, mesmo que não houvesse a menor necessidade disso, simplesmente porque eu tava com medo. De quê? Não sei.
Eu não sabia, mas isso era ansiedade. E isso não acontecia só em viagens, acontecia com mais ou menos frequência eventualmente em outras ocasiões.
Sabe quando eu percebi que tinha ansiedade?
Quando fui fazer outra viagem recente. Era uma viagem grande, eu teria que falar outra língua, teria que entrevistar pessoas, passaria por imigração e o escanbau. E eu tava estranhamente tranquilo. Não tava preocupado com nada.
Meu amigo Alê disse uma vez que ansiedade é uma coisa que a gente só percebe na falta. E depois dessa viagem constatei que ele tinha razão.
Tenho certeza que esse vazio de ansiedade foi um resultado do vipassana. É claro que um ano de suor sofrido no crossfit e uma alimentação mais consciente também fazem diferença.
Mas isso não quer dizer que a ansiedade tenha ido embora pra sempre, eu só aprendi a lidar melhor com ela.
Graças ao vipassana eu também consigo perceber quando ela chega. Na verdade, o vipassana nos torna enormemente conscientes de todos os sentimentos, da felicidade à tristeza, e, ao ter essa consciência, nós podemos apenas observá-los passando como malas que não são suas em uma esteira de aeroporto. Ficar dez dias prestando atenção em cada minúscula partícula do seu corpo realmente te ajuda a não se envolver demais com suas próprias emoções. Você se torna uma pessoa que só observa.
Lembrando o Robert Wright, que eu citei lá no volume II, “o primeiro passo para ver através desses sentimentos é vê-los em primeiro lugar — tornar-se consciente de como os sentimentos influenciam de forma difusa e sutil nosso pensamento e comportamento”.
Mas se for pra resumir seria isso: o vipassana me ajuda a me observar. Se a minha mente fosse a “mais infernal e desavergonhada orgia de drogas detonadoras de cérebros da humanidade” — pra citar o Tom Wolfe —, o vipassana seria o segurança da balada. É claro que pode ser legal participar da festa, mas só se tiver a escolha de sair quando encher o saco.
Capítulo 9: À esquerda na galáxia de Andrômeda
Acontece que o Ken Kinsey, em parte, tem razão. Nós estamos sempre reagindo a eventos que aconteceram alguns segundos atrás. Na verdade, pra ser mais preciso, um bilionésimo de segundo atrás.
Isso é o que diz a teoria da relatividade restrita do Einstein.
Não, não tô falando da teoria da relatividade geral, a mais famosa, a Beyoncé das equações da física teórica, que foi apresentada em 1915 e explodiu o cérebro de meio mundo, não tô falando dessa, tô falando da restrita, uma outra teoria que ele formulou antes, em 1905, e que, apesar do nome, é bem abrangente.
Pois bem, segundo a teoria da relatividade restrita… (esse é o momento em que eu ativo o modo palestrinha e começo a explicar o conceito, mas, por favor, não vai embora, sei que parece papo de maluco, mas valorize o trabalho do autor, se ajeita na cadeira e me segue)…
Pois bem, como eu ia dizendo, segundo a teoria da relatividade restrita, entre o passado e o futuro de cada acontecimento (como o momento de agora no qual você está lendo este encerramento de parêntesis), existe um "meio do caminho". Esse "meio" é como um presente que se alonga, um presente estendido, que não é exatamente passado nem futuro, mas algo entre os dois. É como se o "agora" tivesse um espaço para acontecer antes de virar passado ou futuro. Essa é a teoria da relatividade restrita do Einstein.
Para o físico Carlo Rovelli, o presente estendido é “a maior mudança em nossa compreensão da estrutura temporal do mundo”.
No livro A realidade não é o que parece, que eu adoro citar em qualquer ocasião, o Rovelli explica essa ideia do Einstein com um esqueminha, nessa foto horrível que eu tirei:
A apenas alguns metros do nosso nariz, o presente dura um bilionésimo de segundo: praticamente nada. Do outro lado do oceano, essa "zona intermediária" se estende por um milionésimo de segundo, ainda nada. Na Lua, porém, o presente se prolonga por alguns segundos, enquanto em Marte ele alcança cerca de quinze minutos. Como escreve o Rovelli:
“Isso significa que podemos dizer que em Marte há eventos que nesse preciso momento já aconteceram, eventos que ainda devem suceder, mas também quinze minutos de eventos durante os quais acontecem fatos que para nós [que estamos na Terra] não são nem passados e nem futuro.”
E quanto mais longe no Universo maior é esse tempo. Na galáxia de Andrômeda, por exemplo, o Rovelli diz que esse tempo é de de 2 bilhões de anos.
Dá pra imaginar? Não, né, porque a gente não foi feito pra perceber o tempo dessa forma, mas o Rovelli ajuda:
“É como perguntar se a nossa galáxia está ‘acima ou abaixo’ da de Andrômeda: uma pergunta sem sentido porque ‘acima’ ou ‘abaixo’ só tem sentido para duas coisas na superfície da Terra, não para dois objetos arbitrários no Universo. Não existe sempre um ‘acima’ e um ‘abaixo’ entre dois objetos quaisquer no Universo. [Da mesma forma] Não existe sempre um ‘antes’ e um ‘depois’ entre dois eventos quaisquer que acontecem no Universo.”
O Kinsey diz que o presente não existe, porque, quando o percebemos, ele já passou, portanto estamos condenados a reagir sempre a um fato do passado. O Einstein corrobora essa ideia. Mas ele diz que isso só faz sentido se considerarmos o que entemos por “presente” na Terra. Afinal, o tempo é relativo, depende de onde estamos situados no Universo.
No Sincronário da Paz, por exemplo, que se inspira nos estudos de José Argüelles sobre o calendário maia — e sobre o qual eu já escrevi algumas vezes —, o ano é contado de um jeito diferente. Em vez de 12 meses, eles usam o tempo da Lua, dividindo o ano em 13 ciclos lunares que somam 28 dias cada. Mas tem uma coisa especial: quando o ano termina, no dia 24 de julho, eles não começam o próximo ano no dia seguinte. Existe um dia no meio chamado Dia Fora do Tempo, que é o dia 25 de julho. Esse dia não "conta" no calendário. É como uma pausa para pensar sobre o ano que passou e se preparar para o próximo. Só depois disso, no dia 26 de julho, começa o novo ano.
Acho que é exatamente aí, nesse presente estendido do Einstein, nesse dia fora do tempo, que o vipassana situa a gente.
Capítulo 10: Neoplasias sólidas metastáticas
O Emmanuel Carrère tem um “livrinho simpático”, com ele mesmo diz, sobre meditação, ioga e sobre a curta experiência dele no vipassana — que foi interrompida pelo ataque terrorista no jornal Charlie Abdo, onde ele tinha amigos. Chama Ioga.
Ele conta uma anedota na qual o escritor Malraux pergunta a um padre: “O que o senhor, que passou cinquenta anos escutando as pessoas no confessionário, aprendeu sobre a alma humana?”. E o clérigo responde: “Aprendi duas coisas. A primeira é que as pessoas são mais infelizes do que imaginamos. A segunda é que não existe gente grande”.
De fato, quanto mais velho eu fico, mais eu percebo que ninguém tem o mínimo controle da vida, ninguém tem certeza absoluta de onde tá indo, a gente só segue quem aparenta ter mais confiança, e, no fundo, estamos todos à deriva, vivendo na superfície de uma bola voadora que viaja no espaço em direção ao nada. Além disso, a infelicidade é uma companheira com a qual precisamos aprender a conviver. Ela tá aí vindo tomar cafezinho na nossa casa todo dia. Mas existem estratégias para se sentir minimamente confortável vivendo nessa bola voadora que é desigual, violenta, intolerante e sem noção. O vipassana parece ser uma delas — um conhecimento que obviamente é um privilégio, já que possivelmente uma mãe solo de cinco filhos que leva duas horas e meia pra chegar no trabalho todos os dias encontre pouco espaço para meditar.
Eu não tô sendo emocionado ao falar que o vipassana pode ser uma boa ferramenta para a mente. Aqui vai a cartada da ciência ocidental: tem estudo falando disso. Esses dias o site em que eu trabalho publicou uma pesquisa na qual os investigadores recrutaram 55 pessoas com câncer terminal (que eles se referem como “neoplasias sólidas metastáticas”, o que mais parece o nome de uma banda de metal melódico). Todas as pessoas tinham a expectativa de vida de menos de um ano, uma situaçao complexa e que pode gerar bastante ansiedade. Eles separaram todo mundo em dois grupos e aplicaram meditação de atenção plena (mindfullness, como o vipassana) em um desses grupos, e no outro não.
Os pesquisadores perceberam que o grupo dos meditadores apresentou uma melhora no bem-estar. Além disso, apresentaram “melhorias moderadas nos desfechos psicológicos, e seus cuidadores experimentam uma melhor qualidade de vida”.
Um documentário que assisti recentemente também mostra como foi a prática do vipassana em um presídio de Minas. Se eu já me sentia enclausurado meditando em uma chácara cercada pela mata, imagine como deve ser essa experiência em uma penitenciária. Parece impossível, mas é interessantíssimo! Os depoimentos dos presos mostram que a prática pode ser bastante útil, não pra docilizar as pessoas em um ambiente que os massacra, mas pra que possam entender seus padrões e evitar cair nos mesmos erros.
“Até fisicamente você se torna outra pessoa, você anda leve, e você não pensa mais em bobeirada”, disse um dos participantes.
Enfim, como diz o Carrère, “a experiência da meditação, quando é boa, é uma maneira absoluta de estar bem. Estamos bem porque estamos aqui. Estamos bem porque não estamos em nenhum lugar melhor do que este em que estamos. Habitando este corpo, tranquilamente postado na fronteira entre o que somos, o que não somos, entre o fora e o dentro, e sentindo nosso viver. Não fazer coisa alguma: apenas viver.”
Se o presente não existe como o conhecemos, se o presente é um agora esticado ao infinito, como observou o Einstgein (e talvez Buda dois mil anos antes dele), então o que chamamos de “agora” é só um esforço humano para organizar o que, na verdade, é uma correnteza contínua atemporal. E eu quero aprender a surfar nessa correnteza.
O fim.
Posfácio
Se você chegou até aqui é porque, de alguma forma, eu consegui ser mais interessante do que o Instagram e o Tiktok, o que, convenhamos, é uma batalha desigual. Então, meu muito obrigado!
Tenho falhado na periodicidade dessa humilde newsletter, é verdade. Mas culpem o capitalismo, porque eu tô bem de boa. Vocês não vão me ver reclamando de falta de tempo aqui. Mas gostaria de dizer que a experiência em vídeo na última edição foi bem agradável e eu devo repetir nas próximas edições da Microdose de PunkYoga (que é onde eu faço recomendações mais curtas). Vem aí…
Gostaria de agradecer muito à Angélica que editou cortes do vídeo e fez com que fosse possível postá-los no Tiktok, vejam só.
E gostaria de agradecer também todo mundo que chegou pela Aurora: oi, pessoal! Agora, eu faço oficialmente a curadoria dessa newsletter da editora Seiva, e tenho me divertido muito escolhendo as notícias diárias de cultura. Assina lá.
Se tiver alguma dúvida sobre o vipassana ou sobre qualquer outra coisa, me manda um comentário, porque eu adoro falar e escrever textos longuíssimos sobre esses assuntos.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor & anarquia,
Nathan
Na minha família, quando a pergunta é “está tudo bem?”, a resposta mais comum é “está tudo sob controle”.
Quando comecei a meditar, eu tinha medo de perder o controle. Foi aí que eu soube o que era ansiedade pra mim.
Obrigada pela edição, querido!
Olha que divertido, Nathan, você atrasou seu calendário e calhou de chegar justo no dia em que finalmente me inscrevi para o Vipassana! Hehe Ainda vão analisar minha inscrição enquanto experimento esse tempo de duas semanas que eles pedem com uma dose de ansiedade recém-descoberta como você comentou nesse texto belíssimo. Seu poder de costurar assuntos é maravilhoso, e eu sempre fico com vontade de ler mais (você e suas recomendações).