Capítulo 1
Esse dias vi uma cena de novela que me arrancou um suspiro. Em Mania de Você, do João Emanuel Carneiro, o Chay Sued descobre que sua namorada está aos beijos com o pescador descamisado vivido pelo Niclas Prattes.
Em prantos e decepcionadíssimo, ele diz uma das coisas mais tristes que eu já ouvi alguém dizendo: “Eu sou incapaz de despertar amor em alguém”.
Poderia soar melodramático, se não soubéssemos que o Chay tem uma relação problemática com a mãe (Adriana Esteves, ex-Carminha), que não consegue demonstrar amor pelo próprio filho, e vive às turras com essa falta de sentimento, ora humilhando e enxotando o rebento para longe, ora se sentindo culpada.
Então, quando o Chay diz “eu sou incapaz de despertar amor em alguém”, ele não se refere só à situação com a namorada, ele tá falando do trauma de uma vida. E aí a gente entende por que a cena tem tanto choro, tanta baba escorrendo e tanto drama.
João Emanuel Carneiro é bom demais, puta que o pariu!
Agora, os monogâmicos que me perdoem, mas eu não posso continuar esse texto sem fazer uma leitura não-monogâmica dessa situação, observando que: o estopim para tantas lágrimas, tanto caos, tanto sofrimento foi… Um beijo.
Sim, eu entendo que foi uma traição. Eu sei. Mas vamos analisar friamente, como se fôssemos alienígenas estudando o comportamento humano: o Chay ficou destruído, saiu de casa, despejou todos os traumas da sua vida no colo da garota, e aí toda a parceria que eles tinham se dissolveu, simplesmente porque a menina sentiu atração por outra pessoa… Mas, gente, é o Nicolas Prattes sem camisa sob o sol. Quem poderia culpá-la?
Enfim, será que alguém acredita mesmo que vai passar a vida inteira sentindo atração por uma única pessoa? Nem o alienígena observador acreditaria nisso.
Capítulo 2
“Diegese”. Aprendi essa palavra no Vrau Cast, um podcast do Porta dos Fundos que tira um sarro dos apresentadores imbecis de podcast. Em uma conversa completamente despirocada sobre fake news, o antropólogo Orlando Calheiros, fala sobre esse conceito:
— Explica de novo [o que é “diegese”] com uma linguagem normal… — pede o Rogerinho do Ingá.
— Quando você sai de um filme que tem um super-herói que voa, você sai dali achando que pode voar? — pergunta o antropólogo.
— Não, mas gostaria…
— Esse “não, mas gostaria” já é um entendimento crítico seu — explicou o antropólogo. No filme do Superman, por exemplo, voar faz todo sentido. Fora dele, não. Diegese é essa realidade interna que faz parte do mundo fictício. — O problema da fake news — continua o antropólogo — é quando as pessoas começam a confundir ela com a realidade. E aquilo vai se tornando mais real do que a realidade.
Segura essa informação por um momento.
Capítulo 3
Fiz esse grande aposto só pra dizer que eu entendo o sofrimento do Chay Sued depois de ver a namorada beijando outras bocas. O drama monogâmico faz parte da diegese das telenovelas. Se todos os personagens fossem não-monogâmicos, o que seriam das novelas no Brasil?
A questão é que eu acho que, na verdade, a monogamia não faz parte da diegese apenas das telenovelas, ela faz parte da diegese da nossa vida.
Ela é um dos elementos principais da ficção da qual é formada a nossa sociedade. Nós crescemos e absorvemos a história de que só existe uma única forma de se relacionar romanticamente com outras pessoas, que é através da posse e da dominação.
Sufocamos e esmagamos a pessoa que amamos até ela se transformar em outra. Podamos ela como podamos uma samambaia, evitando que seus galhos se ramifiquem para cantos que não gostamos. Assim, fazemos ela se enquadrar ao nosso modelo de realidade. E quando ela muda, deixamos de amá-la. Ou como Xitãozinho & Xororó bem cantam na balada do cowboy otário:
Deixei de ser cowboy por ela
Parei de viajar por ela
Larguei minha paixão por ela
Deixei de ser feliz por ela
Assim eu me enganei por ela
Por isso resolvi voltar
São segredos da paixão
Por eu não ser mais peão
Ela resolveu me abandonar
Agora, os não-monogâmicos que me perdoem, mas este não é um texto sobre a não-monogamia.
O ponto que eu quero chegar é: se a monogamia é um elemento diegético da narrativa da nossa vida, tipo uma coisa que só faz sentido dentro da realidade da nossa história como sociedade — porque existem outras culturas que enxergam o relacionamento romântico de outras formas —, então várias outras coisas que a gente acredita também podem ser.
Acontece muito quando eu vejo o Big Brother, por exemplo, e fico observando as pessoas tendo brigas homéricas por causa do feijão ou se debulhando em lágrimas quando um amigo é eliminado, como se fosse uma morte. Na verdade, os participantes, sem contato com o mundo exterior, estão vivendo intensamente dentro daquela realidade. Aquele diegese.
Já eu tô do outro lado da televisão, achando tudo muito ridículo e exagerado.
É aí que penso: e se tiver alguém neste exato momento olhando a minha vida de fora, como um espectador, achando tudo muito ridículo e exagerado?
Não tô falando de um espectador de verdade, claro, falo da ideia de que os meus sentimentos podem ser condicionados à limitação da minha percepção, como se eu fosse um participante de reality show trancado em um estúdio de TV.
E se o medo, o sofrimento e a ansiedade que sentimos surgirem justamente porque estamos acreditando demais na narrativa que criamos para nós mesmos? Se isso for verdade, então a felicidade também pode ser.
Capítulo 4
No livro Mare Nostrum, o Fauzi Arap diz que a vida é um psicodrama. Pra ele — que foi um dos maiores dramaturgos do Brasil, e era considerado o guru da Maria Betânia — é como se nós, de fato, estivéssemos vivendo numa peça de teatro, ou, por que não?, numa novela.
Falei desse livro do Fauzi no artigo sobre psicodélicos que escrevi pra revista Cult com o Tófoli. Esses dias meu querido amigo Alex me pediu o livro emprestado, e eu fui rever as últimas marcações que tinha feito.
Entre página dobradas e palavras sublinhadas¹, mais do que “psicodrama”, o Fauzi define a realidade em cinco palavras que desmascaram a ilusão que a gente vive. Citando o Pirandello, outro dramaturgo, ele diz: “Assim é, se lhe parece”.
“E, dessa forma, nossa atenção sempre acaba fabricando um mundo e uma vida que se assemelham à concepções que temos dele e dela.”
Não é discurso de coach sobre mindset. Sabe aquela ideia de que a gente só pode sonhar com o que a gente conhece? Então…
Talvez, da mesma forma que a água se molda ao formato de qualquer recipiente, nossa percepção da realidade se ajuste àquilo que a gente conhece.
“Muitas realidades simultâneas coabitam espaço e corações, e cada uma acredita apenas naquela que frequenta.”
Sendo assim, é totalmente compreensível que alguém, acostumado a vida inteira com a ideia do amor como posse — como o Chay Suede na novela —, entre em parafuso ao ver sua parceira beijar outra pessoa. Ele já acredita demais na ilusão da monogamia.
Não tô dizendo que isso é bom ou ruim, não julgo razão de personagens fictícios.
Tô mais interessado em entender como a mente é capaz de criar realidades internas que nos fazem sofrer. Ou não, né, depende. Quer dizer, se minha mente pode inventar cenários e me aprisionar neles como se fossem reais, então tendo consciência disso, quero fazer com que esses cenários sejam como a praia paradisíaca de Búzios onde o Nicolas Prattes se banha sob o sol. Não o lixão da Mãe Lucinda.
***
¹ Sim, eu dobro e rabisco livro. You only live once!
Posfácio
Depois que terminei esse texto, me toquei que ele é um complemento do Mental prisão (PunkYoga #62), que também fala sobre como a nossa mente é uma cobra traiçoeira. Não foi nada planejado, só revela como sou prolixo e compulsivo-absessivo.
Mudando de assunto, reparou que eu mudei o logo?
Troquei a geometrização do logo antigo (que eu tanto amava, usei por quatro anos e que foi feito pelo meu amigo William Augusto), por essa fonte que tem a ver com os contos de horror que eu ando metido. Ela também é tão irregular, sem noção e duvidosa quanto esta newsletter.
Consegue adivinhar de onde é essa fonte?
É de um bagulho famoso. Na próxima edição eu revelo… Fiquei com vontade de fazer uma camiseta com ela, mas não quero ser processado.
Para a próxima, também quero escrever sobre como tem sido um ano depois do vipassana. O que mudou na minha vida um ano depois de ter ficado dez dias em silêncio e meditação. Mudaram algumas coisas, acho que tem a ver com o texto de hoje, mas tem mais…
Até lá, se você quiser, dá uma lida no Mortífero Nirvana (PunkYoga #58), em que eu detalho a experiência.
É isso! Você ainda tá aqui? Poxa, obrigado por me ver papagaiar até agora. Sério, é uma honra ter sido mais interessante que o TikTok ou o Instagram. Espero, né.
Te vejo daqui a quinze dias, sempre às sextas — menos hoje, que é quinta, fazendo jus à irregularidade do logo.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor y anarquia,
Nathan
Tenho observando minha mente e percebido estes julgamentos à partir daquilo que a minha mente quer enxergar. E acho isso tão, tão angustiante. Não sei se você conhece o livro Os 4 Compromissos (que ficou famoso por conta de alguma BBB 😅), mas ele fala um pouco sobre o nosso processo de domesticação que, depois do seu texto, me deu até vontade de reler. E fico pensando que a meditação é o único caminho mesmo. O que me leva ao último ponto que é saber que faço 1 ano como leitora da sua news 🥳, já que cheguei por conta do texto do vipassana (que ainda não fiz, mas está nos planos do início do próximo ano).
tb quero a camisetaaa!
obrigada pela edição ❤️