PunkYoga #58: Mortífero nirvana, vol. II
O nobre silêncio chega ao fim: como terminei os dez dias de meditação vipassana
No capítulo anterior da PunkYoga, eu falei sobre o começo dessa silenciosa aventura em busca do meu eu interior. Acontece que meu eu interior é levemente surtado, e eu precisei de ajuda pra lidar com a demanda de ficar dez dias meditando em silêncio absoluto. Se você não leu o primeiro volume dessa história, sugiro que leia em nome da coerência e da continuidade… É só clicar aqui.
Se for do tipo rebelde e quiser pular direto pro segundo volume, tá tudo bem também, sem grilo, não tenho filho desse tamanho, eu hein.
Capítulo 3: A treta da física
O que acontece dentro dos átomos é tão misterioso quanto o que acontece no Universo profundo.
Na verdade, são dois universos separados que não se bicam. De um lado, você tem a física de partículas (ou quântica, ou atômica), que explica as interações microscópicas do mundo subatômico. Do outro, você tem a astrofísica, que nos ajuda a entender um pouco mais sobre estrelas, planetas, galáxias e buracos negros. A gravidade, que funciona tão bem na dimensão gigante do cosmos, é uma força não se encaixa na minúscula física das partículas. E aí temos um problema: duas físicas totalmente diferentes que explicam a mesma realidade que nos cerca. As duas funcionam bem, mas uma não se encaixa na outra. E até agora não existe nada que as unifique. Não existe teoria de tudo.
Eu adoro a existência desse problema científico. Era exatamente sobre isso que eu tava escrevendo pra revista Galileu, no dia em que parti para os dez dias de vipassana.
Talvez por isso eu tenha ficado tão encantado quando, em uma das palestras noturnas, o professor Goenka disse que foi através da meditação que, há 2500 anos, Buda chegou ao conceito de que o corpo (e toda matéria) é formado por “unidades indivisíveis” — ou o que os cientistas, no século 20, descobriram ser “partículas fundamentais”, que são os prótons, elétrons & outras coisinhas menores do que os átomos. Buda não racionalizou isso, ele sentiu com o próprio corpo, e ensinou um caminho pra que todo mundo sentisse também: o vipassana.
O próprio físico Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atômica”, escreveu o seguinte:
As noções gerais acerca da compreensão humana […], ilustradas pelas descobertas da física atômica, estão longe de constituir algo inteiramente desconhecido, inédito, novo. Essas noções possuem uma história em nossoa própria cultura, desfrutando de uma posição mais destacada e central no pensamento budista e hindu. Aquilo com que nos deparamos não passa de uma simplificação, de um encorajamento e de um refinamento da velha sabedoria.
Era com esses devaneios teóricos que eu tava me debatendo quando alcancei o quarto dia do curso de vipassana.
Capítulo 4: Células mortas
Se antes a tarefa era focar a atenção no ar que entrava e saía do nariz, depois do quarto dia, nós tínhamos que fazer isso no corpo inteiro. A ideia era prestar atenção nas regiões que iam do topo da cabeça ao dedão do pé, como se estivéssemos passando por um scanner. Coceiras e dores deveriam ser observadas, não sentidas — do mesmo jeito que fiz com a raiva estratosférifca que me invadiu dias antes, do mesmo jeito que podemos fazer com tudo na vida. E o ideal era permanecer na mesma posição por uma hora.
(É óbvio que nem todas as vezes dá pra ficar completamente parado. Mas é preciso fazer o mínimo de movimentos possível.)
Depois de scannear o corpo por umas duas ou três vezes, voltamos a atenção pra parte de dentro. Não precisa imaginar órgãos e correntes sanguíneas, só se voltar para o interior.
Assim, caindo em si mesmo, você se desprende de você.
O problema é que nem sempre a mente colabora, né. A todo momento ela tenta te lembrar de que você não sabe onde colocou a sua certidão de nascimento, ou por onde andará o cover do Marcos Mion. Brotam memórias, situações, pessoas, reflexões... Choros são comuns.
Não à toa, foi nessa condição que a Duda Beat resolveu interromper o ciclo de relacionamentos tóxicos, largar o cursinho pra medicina e se tornar cantora. Não à toa também, foi nessa condição que o Sidarta Ribeiro teve a ideia de escrever o livro “As Flores do Bem”.
Quando se percebe o devaneio, é só voltar e recomeçar de onde parou. Isso faz com que o processo completo de scanneamento dure muitos minutos. Por isso, se você tiver compenetrado, pode ser que uma hora passe voando. Se não tiver, aí fodeu.
Lá pelo oitavo dia, consegui completar o processo de scaneamento direto pela primeira vez. Não sei dizer muito bem o que senti.
Queria dizer que senti Deus (ou Deusa, ou Deisy), pra soar bonito, mas a verdade é que, pela primeira vez na minha vida, eu senti a mim mesmo de uma forma que nunca tinha sentido antes.
O que a gente entende como o momento presente não é igual em todo o Universo. A teoria da relatividade do Einstein diz exatamente isso. Ela mostra que o tempo é relativo, que ele não passa igual em todos os lugares do cosmos — o presente na Terra não é igual ao presente em Marte —, porque depende da infuência da gravidade, a qual, por sua vez, varia de acordo com a massa dos corpos no Espaço.
Mas, naquele momento, quando atingi um estado de presença inédito na minha vida, por breves segundos, o campo ao meu redor parecia se expandir, era como se todos os presentes do Universo fossem um só.
Então é assim que se sente um Super Saiyajin, pensei.
Nesse estado mental, não existe tempo, não existe espaço e não existe sepração entre as coisas.
Foi assim que, do nada, meu avô brotou na minha consciência. Eu pude sentir ele, abraçar ele e chorar. Cada célula do meu corpo parecia conter o meu avô, cada molécula do meu corpo parecia reivindicar sua origem. Eu já não era mais eu, eu era todo mundo que me constituiu.
Capítulo 5: O fim do nobre silêncio
Ainda no oitavo dia, na palestra noturna, fomos informados de que o nobre silêncio terminaria dali a dois dias, depois do café da manhã. Era só um aviso qualquer. Ninguém viu que aquilo me atingiu como um tiro de canhão.
O que eu vou falar? Como eu vou interagir com essas pessoas que só vejo de soslaio há dias? E se ninguem quiser ser meu amigo? E se minha voz não corresponder com a imagem que as pessoas fizeram de mim? De repente, fui invadido por uma ansiedade que eu conhecia muito bem.
Era a Lara Fabian, a fobia social que eu batizei com nome de cantora a fim de tentar entender um pouco melhor. Ela surgiu no fim da pandemia, quando passamos a poder frequentar os lugares de novo. Confesso que só muito recentemente consegui voltar a sair de casa sem sentir aquele sensação estranha de estar completamente desprotegido longe da minha cama.
A sensação ali no vipassana era parecida. Mas mil vezes mais forte, porque ela era física. Eu sentia como se tivesse um ralo no meu peito engolindo toda minha luz própria. Enquanto minha cabeça projetava sensações impossíveis, meus pulmões ficavam sem ar. E eu tentava manter o semblante sereno. Foi a pior sensação que eu já senti na minha vida — sóbrio. Por isso, por favor, jamais subestime o poder de dez dias recolhido em um ambiente meditativo. Não é uma colônia de férias.
Pra lidar com a situação, lembrei de anicca (“ani-txá”), da impermanência das coisas. Aquilo iria passar, eu tinha certeza. Mas, naquela noite, enquanto a Lara Fabian rosnava com seus dentes afiados, eu fui dormir pensando que seria impossível suportar mais dois dias.
Eu suportei.
Em uma reportagem da The New Yorker, o escritor Adam Gopnik lembra que a meditação não é uma rota metafísica em direção a um plano superior, mas uma “sonda cognitiva para a autoexploração que sublinha o que a psicologia contemporânea já sabe ser verdade sobre a mente”. Citando Robert Wright, autor do livro “Why Buddhism Is True”, ele escreve:
“De acordo com a filosofia budista, tanto os problemas que chamamos de terapêuticos quanto os problemas que chamamos de espirituais são produto de não ver as coisas com clareza. Além do mais, em ambos os casos esta incapacidade de ver as coisas com clareza é, em parte, produto de sermos enganados pelos sentimentos. E o primeiro passo para ver através desses sentimentos é vê-los em primeiro lugar — tornar-se consciente de como os sentimentos influenciam de forma difusa e sutil nosso pensamento e comportamento.”
Essa era uma das lições que eu tava aprendendo ali na prática. A minha questão era completamente mental, ainda assim meu peito parecia ter um buraco real. Eu dormi e a sensação passou. E, quando finalmente chegou o dia de poder voltar a falar, eu não tive problema nenhum com isso. Inclusive, fui até atrás de papo e conheci pessoas muito legais.
A mente é mesmo tão traiçoeira quanto promoção da Black Friday.
Capítulo 6: O Universo em uma equação matemática
A matéria que eu escrevia pra Galileu falava sobre a descoberta de uma nova força.
Acontece que os cientistas perceberam que uma partícula fundamental conhecida como “múon”, uma prima do elétron, estava interagindo com algo que teoricamente não deveria existir. É que, desde a década 1970, os físicos seguem as ideias do modelo-padrão, um conceito que descreve todas as partículas fundamentais que existem no Universo. Primeiro, eles afirmaram isso teoricamente. Só depois, ao longo dos anos, os experiementos foram mostrando que a teoria realmente tava certa. É assim que funciona a física.
A última grande descoberta que comprovou a precisão do modelo-padrão foi a existência do bóson de Higgs, em 2012, que a imprensa prontamente batizou de “a partícula de Deus” — apesar de não ter nada de divino na descoberta, mas se tem uma coisa que jornalista ama, além de si mesmo e de comida grátis, é um bom título dramático.
Pois bem, a força que interage com os múons não está prevista no modelo-padrão. Então ninguém sabe o que é. Os pesquisadores devem refazer o experimento em breve pra comprovar o que tá acontecendo, e pra terem certeza de que não estão ficando malucos. Pode ser só uma interferência não programada. Mas, se eles estiverem certos, se realmente existir uma força estranha agindo ali, isso pode indicar o surgimento de uma nova física. Quem sabe uma que consiga finalmente unir a física das coisas microscópicas com a física dos corpos astronômicos?
Esses dez dias de vipassana me fizeram perceber que o silêncio é mesmo nobre, e que ele pode revelar segredos impossíveis de se escutar com o barulho do dia a dia. Uma das coisas que ele fala é que o Universo tá cheio de forças que não podem ser explicadas pela linguagem, ou por equações.
Eu não sou físico, nem sou Buda, mas, ao atingir o estado meditativo a que me propus nessa experiência, eu senti como se todo o cosmos coubesse dentro de mim. Por um instante breve, mas do tamanho do Universo, essa força estranha capaz de conectar tudo era a minha consciência.
O fim.
Posfácio
O título deste ensaio — Mortífero nirvana — saiu de uma fala do excelente episódio sobre psicodélicos do podcast Vibes em análise.
É interessante como coisas completamente aleatórias, às vezes, podem servir perfeitamente para outros propósitos, né.
A minha ideia com esse texto, por exemplo, era registrar o que aconteceu comigo nesses dez dias intensos, mas sei que isso também pode servir pra inspirar você, que pode estar na dúvida de fazer o vipassana, ou mesmo você, que nem sabia que isso existia.
O que eu posso dizer: é transformador. Essa ideia de impermanência muda sua percepção sobre a realidade. Mudou a minha, pelo menos. Mesmo tendo a maior crise de ansiedade do século, eu me arrependeria se não tivesse passado por essa experiência. Se você tem o mínimo de interesse em entender o funcionamento da mente, o vipassana é uma faculdade. O valor é colaborativo, você paga quanto pode. E, apesar de eu ter feito em São Paulo, tem centros em várias capitais.
É um conhecimento que não merece ficar restrito a um punhado de gente.
Mas os dez dias são só o começo. As meditações continuam em casa. E escrever esse ensaio dois meses depois de ter participado do curso me fez entender coisas que eu não entendi logo quando saí (me sentindo grogue e falando mais que maritaca véia no carro com meu irmão).
Se acharem que vale, posso escrever mais pra frente sobre as mudanças que o vipassana me trouxe. Me avisa respondendo a esse e-mail ou nos comentários. Eu vou adorar saber o que você achou desse texto.
Obrigado por chegar até aqui.
Se quiser bater um papo, me procura lá no insta da @punkyoga_ ou no meu pessoal @nathanef. E, se alguma coisa que eu escrevi aqui fez sentido pra você, compartilha com alguém que você gosta, e me ajuda a mandar um grande dedo do meio pro algoritmo do Zuckerberg.
Volto na próxima sexta com a Microdose de PunkYoga, a edição de recomendações com links legais.
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.
Com amor & anarquia,
Nathan
minha vontade de passar por esse processo em algum momento da vida só aumentou! <3
Nossa, uma delícia ler seus textos, relatos… fiquei pensando se eu conseguiria silenciar a mente assim, acho tão impossível isso… sou tão louca que fico pensando se a forma como estou fazendo está certa ou errada e fico nesse looping eterno nas raríssimas vezes que tentei meditar, claro que não chega nem perto, o tempo que tentei desses dias todos que vc vivenciou, mas legal demais saber que é uma parada difícil mesmo Rs. Fiquei curiosa em saber se vc, depois desse retiro, voltou a meditar em casa e se consegue silenciar e alcançar esse estado novamente… obrigada por compartilhar essa e outras leituras ! Abraço e vá pela sombra ;)